Opinião: o que esconde o toque de recolher

Foto: reprodução

A Câmara de Vereadores de Blumenau está situada no chamada área histórica da cidade. A casa legislativa de Blumenau está cercada de museus e imóveis históricos. Parafraseado Cazuza, mesmo que troque seus componentes, a casa da Rua das Palmeira é na verdade um museu de grandes novidades. Na última sessão, nossos edis aprovaram o projeto de lei chamado “Toque de Acolher”. A medida aprovada pela Câmara, não é nova. O próprio autor da proposta já tinha tentado aprovar esta mesma medida no ano de 2009. (O projeto de Lei no 5.745 – 2009) A grande novidade deste ano é a troca da letra A pela silaba Re. Na época ele chamou de Toque de Recolher.

É preciso perceber que as políticas públicas para a criança e adolescência cumprem funções que muitas vezes são estranhas à garantia dos direitos deste público. Muitas vezes a tão pregada “proteção à infância” tem, por trás, ou mesmo por base, relações e interesses políticos velados. Neste sentido, aceito a tese de que não somente ao conceito de infância, mas também o conceito de “criança” em sua forma moderna não atinge e nem está disponível a todas as crianças.

Este modelo de infância tem um caráter de classe e, historicamente, foi utilizado de forma política como instrumento de sobreposição de uma classe sobre outra, como demonstra a história das políticas de assistência à infância no Brasil, onde determinadas crianças são consideradas “menores”, são vistos como “caso de polícia” e não como sujeitos de direito.

Este processo social e político foi iniciado na Europa do século XVII, quando a filantropia era utilizada como mecanismo de poder para apaziguar os pobres revoltosos e construir a emergente sociedade liberal e capitalista. No Brasil, desde o século XIX a política da infância serviu como bandeira e ferramenta utilizada pela burguesia nacional na construção de um país “civilizado” e de “moral elevada”, transferindo para as crianças, como grupo social, a esperança de um país melhor.

Ao longo da história nacional este processo recebeu contornos característicos da nossa cultura política como o paternalismo e o autoritarismo.

No discurso oficial, as crianças e os adolescentes “abandonados” representavam um perigo “real” à nação em desenvolvimento. Eram, por sua vez, fruto de famílias desajustadas, “viciosas”, “avessos ao trabalho” e aos “males” que colocavam a sociedade que se industrializava e que tinha o trabalho como princípio moral superior. Mas, esta história de autoritarismo conheceu alguns períodos de enfraquecimento e de proposta de uma construção de uma nova história de cidadania e democracia.

Na verdade, era um grito que ecoava das ruas, das praças. Um grito daqueles que até então eram tratados como “menores”, como objetos e não como sujeitos de direitos.

Este grito criou no interior deste Estado autoritário, mas por hora democratizado, mecanismos como o Conselho Tutelar que, composto por representantes da comunidade escolhidos de forma popular, aposta na capacidade de autodeterminação do povo, isto é, acreditava que este novo jeito de fazer política que carregava em si uma dimensão pedagógica e democrática. Este novo mecanismo deve atuar sempre que o Estado, a família e a sociedade colocam em risco o novo direito.

Porém, no “meio do caminho” algumas coisas mudaram. Se antes o Estado estava disposto a reconhecer direitos e construir políticas públicas, agora, tendo em vista a adoção de políticas neoliberais, passou a cortar os direitos não só dos “vadios” como fazia antes, mas até mesmo dos trabalhadores.

Neste novo cenário, os Conselhos Tutelares tiveram suas atribuições deturpadas transformando-o, quando em muito, num órgão de “atendimento das queixas sociais”. Assim, o Conselho Tutelar deixa de cumprir suas funções de fiscalização, controle e assessoramento do Estado e passa a ser apenas uma porta de entrada para a população na rede de atendimento. Minimizando, assim, as suas atribuições na relação com o Estado e fortalecendo-se como uma espécie de agência das famílias. Atrelado a isto, o Conselho Tutelar afasta-se daquele que foi sua matriz e que deveria, portanto, ser seu maior parceiro: os movimentos sociais.

Se no final dos anos 80, existiu um forte movimento social com base social para a criação de leis de proteção à infância, hoje, assistimos a um esfriamento do movimento social, uma adoração ao Estado mínimo e um esvaziamento do debate na mídia que, por vezes, encampa uma verdadeira campanha em favor da privação do direito dos adolescentes, como no caso lei aprovada ontem pela câmara de vereadores de Blumenau.

A nova Lei, aprovada ontem pela câmara de vereadores não é uma novidade e muito menos representa uma medida de proteção à criança e do adolescente. Além se segregar adolescentes pobres, pode transformar de vez um instrumento democrático de garantia de direito em um órgão de controle de condutas individuais.

1 Comentário

  1. Brilhante artigo caro articulista!

    Pena que para a maioria dos vereadores, todo o brilhantismo dessa resenha histórica e conceituação atual do assunto, seja o mesmo que “DAR PEROLA AOS PORCOS” no bem descrito em MATEUS 6, do qual o vereador da proposição e outros “vomitadores” de textos biblicos deveriam conhecer melhor.

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