Opinião | o homem do fim do mundo

Desde sempre, a literatura existiu nas páginas dos livros e tinha como limite o contorno das letras. Porém, essa fronteira tentou ser cruzada para a realidade por 69 anos, na Rússia, onde não seria mais necessário esperar pelo paraíso porque tudo poderia ser feito agora. Com a ideia de que o ser humano é bom se tiver condições para isso, a humanidade foi ao espaço, e de lá Yuri Gagarin viu que o planeta é azul.

Era assim que um menino, filho de agricultores, enxergava a vida. E tudo continuou parecendo justo para ele quando foi admitido na principal universidade do país, onde se formaria em Direito para tirar o mundo do caminho errado. Porém, logo percebeu que a sua casa também era parte deste mundo imperfeito. Então, o jovem Mikhail passou o tempo cultivando seus sonhos como quem planta uma árvore, que cresceu enquanto o tempo lhe levava os cabelos. Diplomático como poucos, colheu os frutos dos sorrisos e apertos de mão semeados em Stavropol, onde nasceu, e também no Ministério da Agricultura, quando finalmente começaria a tornar o futuro dourado em… presente.

Saído da lavoura, se tornou tão poderoso quanto o presidente dos Estados Unidos. Seu nome? Gorbachev, líder da União Soviética.

A UTOPIA DENTRO DA UTOPIA

George Orwell escreveu o livro “1984” baseado nas ditaduras de seu tempo, e a URSS era uma delas. Curiosamente, Gorbachev subiu ao poder em 1985, ano em que tudo começaria a mudar. A primeira surpresa foi quando seu exemplo mostrou ao mundo que as pessoas sorriam na Rússia. Entretanto, a vida não sorriu para ele: primeiro com o acidente na usina nuclear de Chernobyl, em 1986. Foi como se houvesse a pandemia de Covid-19 apenas em um país. A economia piorou muito exatamente quando começou a existir mais liberdade por lá, criando uma bola de neve de descontentamento e crise. Aí, a abertura econômica foi apressada e se mostrou falha.

Tornou-se um astro no ocidente, mas na política externa pagou por erros dos outros, como a invasão do Afeganistão, de onde retirou as tropas. Cometeu também erros de cálculo ao tentar substituir os líderes da Alemanha Oriental, precipitando a queda do Muro de Berlim. Foi o fim do domínio soviético no Leste Europeu. Cairia lentamente, repartindo o poder para evitar um golpe de Estado, que finalmente ocorreria ao tentar mudar a Constituição, visando abraçar o modelo social-democrata da Suécia. O novo país nunca existiria e o golpe militar feriu mortalmente a velha pátria comunista. Poeticamente, o primeiro Estado ateu da história deixaria de existir em um 25 de dezembro, Natal.

Um mundo deixava de existir, pelas mãos de quem tentou melhorá-lo: poderia ter governado como um rei, mas decidiu caminhar pelas ruas e apertar as mãos das pessoas. Tomou decisões que lhe valeram um Prêmio Nobel da Paz, mas que o tornaram desprezado por seus conterrâneos. Seu cortejo fúnebre certamente teve vaias, mas poucos se dão conta de que elas se tornaram possíveis exatamente por causa dele. Aos 91 anos, morre o menino que queria mudar o mundo.

Seja o primeiro a comentar

Faça um comentário

Seu e-mail não será divulgado.


*