Opinião | O fascismo de matriz bolsonarista e sua possível afirmação como regime político

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O fascismo é “cria do capital”. Compreender como se constitui e se desenvolve o fascismo requer compreender a dinâmica das crises cíclicas do regime de acumulação de capital, condição vital do capitalismo. O século XX demonstrou, senão vivenciou o fascismo em toda sua intensidade e monstruosidade, expondo de forma cabal a íntima correlação entre as crises do regime de acumulação do capital e ascensão de movimentos fascistas, bem como sua afirmação em regimes políticos. Este fenômeno (o fascismo) e seus efeitos sociais, políticos, econômicos e institucionais deletérios e, por fim, catastróficos são de tal magnitude que muito se refletiu e se escreveu sobre o assunto. Nesta direção, cabe salientar que mesmo que se reconheçam características estruturais constitutivas do fascismo em cada uma das sociedades em que se manifestou – na Itália com Mussolini, na Alemanha com Hitler, em Portugal com Salazar, na Espanha com Franco, no Brasil com o Movimento Integralista nos anos 1930, com a ditadura civil-militar de 1964 a 1984 e, atualmente com o bolsonarismo, assume contornos específicos, senão singulares, inerentes ao contexto social em que se manifestaram e, se manifestam.

A análise histórico-social demonstra que o despertar do sentimento fascista é uma característica das sociedades “democrático-liberais ocidentais”. Deriva da crise do regime de acumulação do capital em curso em determinado contexto histórico. O fascismo italiano e seu correlato o nazismo alemão, derivaram da profunda crise vivenciada pelo capitalismo do final do século XIX e, que levou a eclosão da I Guerra Mundial. Somam-se consequências humanas e sociais advindas do sangrento conflito, à grande crise econômica de 1929 com a quebra de bolsa de valores de Nova York, lançando em profunda recessão as economias nacionais ocidentais. Naquele contexto, Itália e Alemanha, salvaguardadas as especificidades da dinâmica do capitalismo em cada um desses países, foram profundamente afetadas. Ainda nesta direção, faz-se necessário reconhecer que o fascismo português, ou salazarismo, que vigorou de 1933 a 1974, resultou da reação das elites portuguesas diante do enfraquecimento do Estado colonialista português, que se aprofundava desde a independência de sua principal colônia de exploração – o Brasil em 1822. Tratava-se de reconstituir um Estado português forte preservando as colônias na África e na Ásia e, por decorrência lógica garantir a acumulação do capital de suas elites. Na Espanha, o fascismo que se manifestou pelo franquismo de 1939 a 1975, estava vinculado à reconstituição do Estado espanhol unificado e forte na preservação dos interesses da elite econômica espanhola.

Importante demonstrar  que em diversos outros países o fascismo se fez presente em diferentes períodos, com características similares de manutenção da concentração dos poderes políticos e econômicos. No Brasil, o fascismo se apresenta em diversos momentos e de diversas formas. Apresentaremos três destes momentos. Dois situados no século XX e, um deles em curso no momento em que estas linhas são escritas. Nos anos 30 do século XX, o fascismo se apresentou inicialmente como movimento de ideias, para constituir-se em movimento de massas sob a liderança de Plínio Salgado (1895-1975) e, apoiado por eminentes intelectuais, juristas e literatos da época, entre eles, o jurista Miguel Reale (1910 -2006). O Movimento Integralista (de contornos fascistas) se apresentou na crise do regime de acumulação, que se instaurou com o início da industrialização brasileira numa parceria entre Estado e nascente burguesia, afetando os interesses econômicos e as relações de poder sob controle, até então das elites oligárquicas exportadora de matérias primas, escravocratas advindas do Brasil colônia.

A partir dos anos 50 do século XX, com o avanço da industrialização da economia brasileira e, em decorrência do intenso processo de reconfiguração demográfica da sociedade  caracterizado pela intensa urbanização, bem como pelo reconhecimento de setores progressistas da sociedade brasileira, da necessidade do Estado de enfrentar as profundas contradições sociais, políticas e econômicas instaurou-se profunda tensão entre as demandas pelo fortalecimento das teses desenvolvimentistas nacionais, que preconizavam: 1. A constituição de uma sólida e autônoma indústria nacional; 2. A implementação das reformas de base, que visavam dirimir as profundas contradições constitutivas da sociedade brasileira; 3. O fortalecimento e ampliação da democracia liberal, com a ampliação de direitos sociais e individuais e investimentos nas diferentes regiões no contexto social brasileiro.

O resultado político advindo destas demandas foi a instauração de profunda crise política e social e, o desencadeamento de movimentos de fascistização da sociedade brasileira, que culminaram no golpe civil-militar-ditatorial de 1964, que perduraria até 1984, senão sob certas perspectivas interpretativas e analíticas, ainda vigente na atualidade. A implantação do fascismo como regime de governo, na forma de um Estado civil-militar-ditatorial, teve como objetivo central a afirmação dos interesses oligárquicos agroexportadores de matriz colonial, associado aos interesses privados da burguesia industrial brasileira de aceitar ser sócia subserviente dos interesses econômicos multinacionais e internacionais. Este acordo se constituiu por exigências e garantias do Estado brasileiro, que coercitivamente garantiu um regime de expropriação e exploração das massas trabalhadoras brasileiras. Resultado: aumento das desigualdades sociais, econômicas e cerceamento das liberdades políticas, democráticas, de organização e participação popular. Perseguição, tortura e morte foram expedientes cotidianos do regime fascista, necessariamente de exceção instaurado pelo golpe militar.

Com a “saída” (efetivamente não abandonaram seus postos estratégicos de vigilância e controle da sociedade brasileira. Eficientes cães de guarda dos interesses das elites oligárquicas e burguesas nacionais subservientes ao capital internacional) dos militares do poder, instaurou-se, a partir de prerrogativas conservadoras, progressistas e populares, mas sob exigências da dinâmica da globalização econômica, a necessidade de constituição de um parco estado de bem-estar social, pensado e articulado no contexto de sociedade de desenvolvimento associado e dependente, articulado a partir dos interesses das elites nacionais  subservientes à lógica do capital internacional. Assim, as demandas por justiça social, por participação política popular, bem como a disseminação da percepção social de que a função  primordial da economia socialmente produzida e reproduzida é a garantia da vida, dos bens necessários à dignidade da vida humana, da vida em coletividade permitiram o reconhecimento da afirmação de direitos sociais, individuais e humanos. Mais saúde, mais educação, mais oportunidades de inclusão de parcelas de indivíduos e populações excluídas da sociedade brasileira.

Para a lógica das elites nacionais e globais os avanços sociais, políticos e econômicos alcançados pelas populações mais pobres do país na primeira década do século XXI, se tornou  inaceitável, pois passaram afetar o regime de acumulação do capital. Mesmo considerando-se o fato de que o capital foi generosamente remunerado durante os governos progressistas. A fascistização de parte significativa da sociedade brasileira em curso na atualidade pode ser compreendida como resultado da disseminação de discursos, ideologias e experiências de massificação de informações e opiniões, que incidiram nos mais diferentes extratos da sociedade brasileira, promovendo preconceitos, distorcendo os fatos e a realidade, bem como propagando o ódio aos pobres, aos negros, as mulheres, aos indivíduos de orientação homo afetiva. As narrativas fascistas em curso disseminam as mais diversas formas de violência discursiva e até física. Ou dito de outro modo, para o regime de acumulação do capital apresentou-se insuportável qualquer ameaça (via ampliação de direitos sociais) à acumulação do capital, que se constitui pela expropriação do trabalho humano socialmente constituído.

Ainda nesta direção, é importante salientar que a conjuntura em que o fascismo é lançado é diferente das conjunturas anteriores, que apresentavam cenários de crise. Obviamente em nenhum momento se faz lógico ou há sentido nas elites econômicas e políticas lançarem mão de seu instrumento mais violento, no entanto é importante chamar a atenção para esta diferença. Não se tratava aqui de momento de crise do capitalismo, pelo contrário, se tratava de ampliação dos acessos. E, a ampliação dos acessos beneficiava o consumo, este hábito caro ao sistema capitalista. Outro aspecto a ser considerado, é que este processo de fascistização não ocorreu apenas no Brasil. Cenários similares de estímulo aos conflitos, ódios e promoção de aprofundamento das relações vis e preconceituosas ocorreram ao redor do mundo, com marcos históricos para o episódio Brexit e a eleição de Donald Trump nos Estados Unidos.

Nesta direção, dentro desta conjuntura de ascensão das forças ultradireitistas em todo o mundo, ocorreu no Brasil o golpe civil-militar-empresarial-político-jurídico-midiático de 2016, que destituiu Dilma Russeff legitimamente eleita pelo voto popular, sob a falaciosa acusação de “pedaladas fiscais”. E, uma das primeiras ações após este movimento direitista foi sob o governo golpista de Michel Temer ao promulgar a nefasta PEC 95 que congelou os “investimentos sociais” do Estado em “Saúde e Educação” por 20 anos. O golpe sequestrou o orçamento do Estado (naquele momento ainda não era secreto), retirando dos brasileiros o direito digno de acesso à saúde e a educação. Outra ação voraz do golpe a serviço do capital e, em detrimento da massa assalariada dos trabalhadores foi a reforma da previdência, que grotesca e falaciosamente foi vendida à classe média brasileira (formadora de opinião) como a “salvação nacional”. Precarização da vida. Promoção do sofrimento, da pobreza e da miséria é o que aguarda milhões brasileiros nos próximos anos ao acessarem suas aposentadorias, após uma vida entregue a exploração do capital. Seres humanos descartáveis. Refugos humanos. A catilinária de agressão do capital ao trabalho poderia continuar conformando uma extensa lista de Projetos de Emenda Constitucional (PEC), Medidas Provisórias (MPs), entre outras manobras legislativas e “legais”, mas deixaremos este exercício para você leitor, que porventura chegou até este ponto do texto.

As experiências históricas demonstram que a fascistização da sociedade, respeitadas as especificidades de cada uma delas apresentam características comuns, entre elas: exploração sistemática sob viés moral da corrupção como um fenômeno exclusivo da política; potencialização de preconceitos, de xenofobia, misoginia, entre outros, presente no “homem médio” pertencente à classe média, que se sente prejudicado, por um lado pelo acesso aos direitos sociais alcançados pelas classes sociais mais precarizadas da sociedade e, por outro lado, por se sentir excluído das oportunidades de consumo constitutivos das classes médias altas e ricas. Neste contexto, viceja o ódio de uma determinada classe social sobre outra. Concomitantemente os líderes fascistas exploram este mal-estar social disseminando via meios de comunicação de massa a partir do falacioso argumento da “falência da velha política” e, da instauração de uma “suposta nova política”. Some-se a isto a difusão ideológica da condição corrompida das instituições, entre outras falácias desta natureza.

Mas, a fascistização da sociedade se aprofunda, sobretudo a partir da associação do discurso fascista com instituições religiosas, ou profissões de fé. É neste terreno da crença, da fé, que o fascismo se move habilmente explorando emotivamente as fragilidades humanas e, suas ansiedades por um mundo seguro. A defesa da família (mesmo que não se tenha clareza de quais os contornos desta instituição na atualidade), dos valores tradicionais (mesmo que não se saiba e, muito menos se esclareçam quais seriam estes valores), a exortação da luta do bem contra o mal são disseminados, misturados, fundidos e confundidos com a política e com o Estado. Apresenta-se aos fiéis, aos crentes uma visão teocrática do Estado personificado no líder “salvador da nação”. É, também nesta dimensão de crença que se cultiva o nacionalismo, o amor à pátria.

Nas experiências italianas e alemãs os meios de comunicação mais avançados da época, jornais impressos, rádio e cinema (Leni Riefenstahl foi a cineasta favorita de Hitler. Para análise de aspectos de seu trabalho cinematográfico acesse no YouTube o documentário: “O Triunfo da Vontade do Partido Nazista – https://www.youtube.com/watch?v=X4hrUccU4pg) foram utilizados em larga escala para disseminar notícias, mentiras, discursos de ódio, discursos patrióticos, nacionalistas, entre outras variáveis às massas tornando-as presas de um ideário nacionalista em que a conciliação das contradições de classe se apresentava como a narrativa messiânica por excelência para a salvação nacional. A narrativa fascista salvacionista concentra sua verborragia falaciosa na pessoa do líder que conduz uma guerra santa (cruzada) contra os inimigos da nação, entre eles necessariamente o comunismo. Desde a origem do fascismo na Itália aos dias de hoje “o comunismo”, o “socialismo” formam os inimigos diretos da nação. Mas, é importante salientar que estes se apresentam como os primeiros inimigos, como no famoso poema de Bertold Brecth os discursos violentos não findam ao encontrar determinados grupos considerados inimigos, logo aparecerão os próximos, é possível perceber nas narrativas das últimas semanas em que foram trazidos à tona preconceito contra manifestações religiosas de diferentes perfis.

O bolsonarismo como movimento fascista que procura se afirmar como regime de governo acrescenta variáveis inimigas nascidas no seio do comunismo, entre elas: as esquerdas, a “ideologia de gênero”, o “marxismo cultural”, entre outras falácias (asneiras) deste gênero. Ainda nesta direção, cabe ressaltar que o fascismo e, sua variável nazista, salazarista, franquista e bolsonarista na atualidade não possuíam e, não possuem uma ideologia definida, ou uma concepção de Estado e sociedade. Os fascistas inclusive refutam tais construções teóricas e conceituais declarando-se afeitos a ação direta em defesa da pátria, da família, da propriedade, dos valores tradicionais. Este vale tudo fascista conduz necessariamente a regimes de governos autoritários e, por fim totalitários. E não nos enganemos, pois o primeiro mandato se apresenta como autoritário, uma continuidade dificilmente não se expressará ainda mais arrefecida.

Enquanto você lê esta coluna no domingo 30 de outubro de 2022 milhões de brasileiros estão digitando seus votos na urna eletrônica. Ao final do dia se o processo eleitoral correr num clima de relativa estabilidade social saberemos se o fascismo de matiz bolsonarista se afirmará como regime de governo, caso contrário talvez tenhamos mais uma oportunidade de situar o debate político no centro da ágora pública e construir um novo pacto social, político, econômico para o desenvolvimento nacional. Portanto, não se trata apenas de uma eleição presidencial, se trata de uma eleição entre a afirmação da barbárie fascista promovida pelo capital na defesa de sua lógica de acumulação de capital, ou da tentativa de retomar a cultura política como único caminho possível ao desenvolvimento humano, social, político e econômico estratégico, urgente e necessário para o desenvolvimento nacional.

É preciso agir

Bertold Brecht (1898-1956)

Primeiro levaram os negros
Mas não me importei com isso
Eu não era negro
Em seguida levaram alguns operários
Mas não me importei com isso
Eu também não era operário
Depois prenderam os miseráveis
Mas não me importei com isso
Porque eu não sou miserável
Depois agarraram uns desempregados
Mas como tenho meu emprego
Também não me importei
Agora estão me levando
Mas já é tarde.
Como eu não me importei com ninguém
Ninguém se importa comigo.

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8 Comentário

  1. Nunca li tão bobagem em um só texto e o cidadão é Professor ?

  2. Sim, estamos e sempre com espaço para o contraditório.

  3. Acho um site bom o informe, só que não vejo textos publicados criticando o lula e o que ele fez com o Brasil, agora postagens a respeito do adversário dele dá para escolher. Não que que eu ache que o Bolsonaro é santo, mas o lula é um bandido condenado (somente por isso ele nem deveria estar disputando nada), a não ser um espaço numa cela com os outro ladrões como ele. E quem defende ladrão e principalmente vota em um se equipara a ele…

  4. Mesmo que não concordamos com o texto, o informe Blumenau sempre foi democrático, apresenta textos e reportagens de forma que todos tenham condições de se expressar, tanto que publica os comentários sobre os textos de forma democrática, desde que não sejam ofensivos e pessoais ….

  5. Olá Ralf, fique a vontade de escrever e nos mandar sua análise.

  6. Sugiro que as bocas raivosas estudem um pouco de história, isso faz bem para a alma e repele a vergonha alheia. Os obtusos vociferam escárnio quando lhes faltam argumentos para enfrentar a verdade/realidade. Parabéns pelo primoroso texto.

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