Opinião | Filosofia, para que serve isso, parte III. (O Poder Nu e a saúde humana)

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Ensinar a disciplina de filosofia, é um desafio que nunca finda. Demonstrar aos estudantes que a interpretação filosófica é uma lente que pode e deve ser utilizada como forma de perceber a realidade em que se está inserido de maneiras diferente, não é tarefa das mais fáceis. A analogia das lentes, parece ser muito adequada, visto que, com certos autores, algumas reflexões são mais distantes e superficiais, em outros, é pormenorizada e detalhada, outros ainda, permitem ver aspectos diferentes, ângulos diferentes dos fatos.

Desta forma, o mesmo conceito, do mesmo autor, pode ter uma interpretação dinâmica, que apesar de ampla, permite (mesmo que o do autor não o tenha realizado), uma reflexão mais profunda, para além de sua concepção inicial. Isso muitas vezes acontece pois o autor ao definir o referido conceito, não teve tempo para se aprofundar, pois estava em meio a outras reflexões, que estava realizando de maneira profunda, seja porque naquele momento histórico, a abordagem se apresentava satisfatória, ou ainda, pois surgirem elemento adicionais e mais profundo a posteriori.

Assim, a reflexão do filósofo britânico Bertrand Arthur William Russell (1872-1970) sobre o Poder, realizado em 1938, pode assumir elementos diferentes, que para os estudiosos eram consideravelmente durante a primeira metade do século XX, mas apresentam-se de maneira bem distinta na contemporaneidade do século XXI. Elementos como economia, por exemplo, estavam sendo estudados com mais profundidade, para compreender a gradativa globalização que passava a ser observada neste momento em que a humanidade estava prestes a mergulhar novamente em um confronto em escala global, com o avizinhamento da Segunda Guerra Mundial.

Russell certamente que, a forma que se passa a lidar com a saúde, em especial, durante o século XXI e as doenças que passam a ser disseminadas em uma escala e velocidade inimaginável, representam uma nova configuração a representação do Poder Nu. Este novo elemento do Poder, que para o pensador britânico se apresentava como forma de monopólio de exercício da violência na existência das pessoas, passa a assumir uma condição que contrariam tradições que grande parte da humanidade praticava durante séculos.

Afinal, é uma forma de extraordinário poder, fazer com algumas pessoas aceitem ser isoladas, de maneira voluntária, para o tratamento de uma doença nova. A aceitação da família, que em muitos casos, terá de prestar suas últimas homenagens ao ente querido após seu falecimento, sem fazer uso dos ritos aos quais foi habituado. É uma confiança extraordinária nos saberem médicos, fazer com que a família e os amigos aceitem se despedir de alguém querido em uma urna, um esquife lacrado, sem vê-lo pela última vez, fazendo que se possa dar um novo significado a expressão tradicional, velório.

Este mesmo poder, não é necessariamente me de um médico em especial, mas de toda um corpo de ofício da medicina. Este corpo de profissionais, tecnicamente treinados para reagirem a circunstâncias dentro de padrões de segurança, busca exercer seu ofício visando o máximo de segurança para as partes envolvidas. Esta busca de lida segura, tanto dos médicos que enfrentam e relatam os sintomas no contato direto com os enfermos, seja o profissional ultra especializado que busca o tratamento dentro de um laboratório de última geração, pertencem ao mesmo contexto de busca de segurança na resolução de um problema social.

Neste momento, é bem possível que se faça a pergunta; afinal, qual a relação do contexto médico, com o Poder Nu?”. Bom, parece que, determinar se um ser humano deve ser isolado, ou pode ter contato controlado com os seus, representa uma forma de poder direto, sem intermediários, de Poder Nu. Esta caracterização ocorre, pois, o profissional, tem um status técnico que lhe permite determinar se a pessoa pode conviver de maneira segura com os outros ou, deve por segurança coletiva, ser posta em outra condição.

Em um contexto de poder macro imaginável, parece que, em determinados momentos, a forma de Poder Nu, refletida por Bertrand Russell, não mais é, em muitos casos, se reflita de maneira simples, no comado para executar um determinado grupo por parte de um governante. Não necessariamente aparece direta e simplesmente da ordem de um governante. A estrutura do Grande Poder Nu, passa gestar em seu ventre, pequenas formas nuas do exercício desta representação de poder. Esta representação ocorre, não maneira voluntária, mas em função de um ideal maior de saúde da sociedade.

É evidente que, as grandes forças econômicas, que operam de maneira direta, através das nações mais poderosas do planeta, de grandes corporações empresariais (incluindo a indústria farmacêutica) de maneira mais discreta nos bastidores, tem consciência destas micro representações de Poder Nu. Desta forma, eles podem exercer seu Grande Poder Nu, sem que necessariamente sejam culpabilizadas dos eventos que ocorrem, afinal, poucas pessoas denunciam uma indústria farmacêutica, mas com frequência o fazem em relação ao médico que prescreveu o medicamento. Desta forma, exercem uma condição de poder pleno, sem a responsabilização de suas conclusões.

Imagina-se agora, a dificuldade que é promover em um estudante, uma reflexão de prospecção tão profunda. Uma imersão conceitual que, faça com que, durante pelo menos alguns instantes, seja possível uma contemplação de uma essência conceitual. Eis que, alguém novamente possa fazer a pergunta; afinal, de que isso me interessa?; muito certamente, interessa em grande medida conhecer melhor as formas de exercício do poder que pairam sob a existência, de modo a determinar se determinado medicamento é adequado, se lhe salvará a vida.

É evidente que, tanto o ofício médico, bem como o mercado farmacêutico é formado por pessoas que buscam a sobrevivência neste mundo. Que as suas ações operam sob paradigmas de responsabilidade com a segurança, que são determinados por convenção por instituições regulatórias, que garantem a obediência a códigos de conduta profissional bastante claros, passiveis de punição. Também não se pode deixar de lembrar que o processo de formação deste profissional, se pauta não somente em questões técnicas, mas também éticas estabelecidas.

Talvez neste sentido, fique um pouco confuso imaginar a operacionalidade deste contexto, fazendo que surja de sobressalto a pergunta, então, professor, de quem é a responsabilidade? De quem é a culpa?. Como a própria reflexão supõem, a compreensão não é necessariamente tão simples. Afinal. Há por certo um interesse pragmático dos profissionais da medicina, enquanto atores técnicos de suas atribuições. Há também um interesse industrial das farmacêuticas. Mas, este interesse, é um interesse de quem presta um serviço, de alguém que está a serviço de uma causa médica, mas também, está a serviço de algum interesse maior, o Estado.

Quem opera o Estado, opera as condições de manipular a estrutura técnica dos instrumentos de saúde. Evidentemente que há um interesse na manutenção populacional, não se pode ser ingênuo em deixar este elemento é fundamento para o Estado, afinal, é o cidadão o produto principal este tem a oferecer nas negociações com as grandes corporações. Mas é interessante, e importante observar que, quem detêm o poder de negociar condições e negociações econômicas em escala internacional, possui uma escala diferente na representação do Poder Nu.

Estas representações de Poder, podem ser caraterizadas como nuas dentro das reflexões russellianas, pois ocorrem de maneira direta, sem necessidade do pudor de se vestirem retoricamente, ocorrem nua. Os reflexos destas deliberações são sentidos na carne pelos que estão sob seu controle (que não, precisa afirmar responsabilidade, afinal, quem tem o Poder decide, está acima das implicações de responsabilidade), é sua propriedade. Suas decisões são justificadas a priori, seja por sua autoridade, seja porque tem sob seu comando técnicos, que tem a responsabilidade de garantir respostas satisfatórias nas negociações a serem realizadas em uma escala macroeconômica.

Desta forma, o governante de Estado, pode fracassar de modo medíocre no que diz respeito ao combate de uma grave doença, e mesmo assim, ter admiradores. A existência destes admiradores, em grande parte, está relacionada a uma retórica que afirma que, houveram avanço. Uma retórica que diz algo semelhante a; lamento a morte daqueles que lhe são queridos, mas economicamente, sou lucrativo, um bom investimento!; que certamente tem a aprovação de muitas pessoas, que visam atender apenas seus interesses.

Num senário tão complexo, a filosofia enquanto atividade contemplativa, lidando com estes elementos tão complexo, como o exercício do poder e a propriedade do Poder, parece ter sua relevância, não como forma de determinar qual decisão é a certa, mas de refletir sobre para quem estar certo é importante. Esta importância, é determinada como forma de consolidação dos proprietários do Poder, que o exercem de maneira nua. Não daqueles que sofrem as consequências deste Poder, e que, para uma melhor operacionalidade, não devem se ater a tais reflexões. Será?

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