Opinião | Eleições municipais II: é preciso debater e qualificar a política

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Para Aristóteles (384 a.C. a 322 a.C.) a finalidade da vida humana é a felicidade. O alcance da felicidade é possível por meio da ação política. A ação política derivava da disposição do cidadão ateniense (neste caso em específico trata-se da cidade-comunidade de Atenas) comprometer-se com a manutenção da polis, do espaço público, onde os cidadãos exercitavam sua natureza politica. Nesta direção, vale lembrar a célebre definição do ser humano proposta por Aristóteles como animal político (zoon politikon). Ou seja, o humano é o resultado de constantes interações, trocas, negociações com outros seres humanos com vistas à constituição e manutenção de um espaço público. Não há humano que se constitua isolado dos outros humanos, destituído da participação da esfera comum dos assuntos que dizem respeito exclusivamente ao mundo humano.

Ou dito de outra forma, somente o ser humano possui um mundo resultado de sua capacidade de falar, nomear, interpretar e agir em conjunto com outros seres humanos sobre a totalidade dos entes, dos objetos que se encontram em seu entorno. Sob tais perspectivas, o mundo é público. É resultado da constante ação política inerente a condição humana. A manutenção e aprimoramento do mundo dependem da constante disposição humana de comprometer-se coletivamente com sua condição pública. Assim, a felicidade resulta da consciência do dever cumprido em relação ao cuidado e promoção da esfera pública, lócus por excelência onde o humano se constitui e exercita suas potencialidades contribuindo para a promoção dos demais seres humanos que com ele habitam o mundo num determinado tempo e espaço.

Na atualidade, passados mais de dois mil anos das reflexões de Aristóteles ainda presentes entre nós em suas obras: “A Política” e “Ética a Nicômaco”, mas também em outras aqui não citadas, tudo indica que privatizamos a felicidade e a política. Tornou-se pratica corriqueira entre as pessoas referirem-se a felicidade como um sentimento individual, próprio da vida privada. Assim, é lugar comum em redes sociais, em conversas entre indivíduos as pessoas revelarem-se felizes por terem comprado algum objeto, bem material, feito uma viagem, ou até mesmo saboreado uma comida, uma bebida. Indivíduos manifestam nas redes sociais sua felicidade por iniciarem um relacionamento amoroso, ou mesmo sua infelicidade por ter terminado o relacionamento.

A questão determinante a ser reconhecida é que sentimentos, emoções e afeções característicos da vida humana no plano privado adentram o espaço público. Por seu turno, a felicidade que se apresentava como decorrência do reconhecimento da participação humana na constituição do espaço público, apresenta-se agora como conquista pessoal, relativa ao âmbito privado da vida humana. Tal condição denota um esvaziamento da ação política, da constituição e manutenção do espaço público. Nesta direção, também a política perde gradativamente sua condição pública. O cidadão retira-se do debate, do envolvimento com os assuntos públicos, do compromisso com a manutenção dos bens públicos inerentes a qualificação da vida da comunidade e, de alcance da felicidade dos habitantes da polis e, adentra por sua condição individual, ensimesmada.

Façamos aqui um interregno na argumentação e, para evitar constrangimentos, ou a valorização excessiva de uma visão humana e social pessimista. Consideremos que não há problema no contexto de mundo em que estamos inseridos em reconhecer a felicidade obtida na vida cotidiana, nas relações e realizações pessoais. Talvez seja este desejo pela felicidade que move e motiva pessoas, por vezes, aos atos mais altruístas. O que se busca ressaltar, entretanto, é que o padrão de excessivo consumo a que somos submetidos por vezes gera a impressão de que a felicidade é apenas obtida por meio da aquisição (compra) de objetos e, também de afirmação de relações funcionais consigo mesmo, com os outros, com a vida e o mundo, ignorando a vida comunitária e espaço público como, também eles, lócus para a realização da felicidade coletiva.

Nesta perspectiva de análise, os indivíduos conduzem suas vidas no interior de “sociedades individualizadas” (Zygumt Bauman). Nestas sociedades, os indivíduos são orientados e, orientam gratuitamente suas vidas sob a lógica da produção e do consumo, do débito e do crédito. Empresários de si mesmos, o grau e (in)felicidade que alcançarem é proporcional ao esforço vital que estiverem dispostos a dispender para participar ativamente desta forma de vida individualizada. O mundo já não se apresenta como compartilhamento e compromisso com o espaço público, com os bens públicos e comuns, mas como um grande depósito de mercadorias a serem consumidas e descartadas diuturnamente. Neste contexto, descartáveis também são todos aqueles indivíduos fracassados como empresários de si mesmos, como empreendedores de si, ou mesmo como consumidores destituídos de créditos suficientes para participarem das condições mínimas de consumo de si, dos outros, da natureza, do mundo em sua totalidade.

Neste cenário marcado pela afirmação de sociedades individualizadas não causa surpresa que também a política tenha sumido da esfera pública, do espaço público (Hannah Arendt). Afugentada da praça pública pela voracidade dos interesses privados, também é maltratada, xingada, desacreditada pelos indivíduos que já não a reconhecem como condição insubstituível de sua cidadania. O desejo insofismável dos indivíduos de privatização da política por desconsiderarem sua condição central na afirmação da condição humana e do mundo humano, intensifica o sequestro da política por grupos e interesses privados, que passam a concentrar e usufruir os bens públicos. Ao agirem desta forma comprometem a vida em todas suas formas de manifestação e, por decorrência a vida humana e, o mundo humano. Destruição ambiental, concentração da riqueza socialmente produzida, injustiça social, preconceito, violência, pobreza e miséria são alguns dos efeitos visíveis da privatização da política.

Neste ano de eleições municipais urge retomar a política, o debate público, o interesse em relação ao uso dos bens públicos. É urgente ter presente que a prefeitura não é do prefeito. Ele (o prefeito) não é dono da prefeitura. O prefeito não é garoto de recado dos interesses do poder econômico, seja ele imobiliário, empresarial, comercial presentes e atuantes no município. O prefeito exerce por delegação dos eleitores o poder executivo. Compete à ele e as seus secretários (de saúde, educação, obras, desenvolvimento econômico, assistência social, meio ambiente, entre outras secretárias) propor políticas públicas, programas de governo que respondam aos interesses coletivos do munícipes. Ou seja, compete ao prefeito (poder executivo) dinamizar e garantir o espaço público e os bens públicos por meio de uma administração pública participativa e transparente. Prefeitura não é empresa. Prefeito não é empresário. Trata-se de espaço o público e de bens públicos pertencentes a coletividade.

Nas eleições municipais deste ano também serão eleitos os representantes do poder legislativo (vereadores). É importante ter presente que também vereador não é garoto de recado de interesses privados. Também não é capacho do prefeito para justificar as ações do executivo. Vereador é membro do poder legislativo e, como tal representa os interesses dos munícipes em sua totalidade. Compete à ele acompanhar, debater, legislar, fiscalizar as ações e as contas do executivo e, sobretudo ouvir a comunidade, abrir espaços de participação política. Compete ao vereador analisar a peça orçamentária anual advinda do executivo, procurando avalizar os adequados e necessários recursos orçamentários para cada uma das pastas da administração em relação a preservação e aprimoramento do espaço e dos bens públicos. Também compete ao vereador encaminhar projetos de iniciativa popular a apreciação do executivo, entre outras tantas possibilidades de representação dos interesses públicos dos munícipes.

Envolver-se com o debate público que as eleições promoverão este ano é fundamental para devolver a ação política sua centralidade. O debate necessita ser público e em torno dos “Programas de governo” dos partidos e de seus candidatos que estarão pleiteando as vagas ao poder executivo, ou legislativo respectivamente. Partidos e candidatos que não apresentarem publicamente seus “Programas de governo”, bem como as fontes de financiamento de suas campanhas devem ser reprovados publicamente nas urnas. Partidos e candidatos envolvidos com negociações espúrias de compra de votos, de favores e benefícios privados também devem ser reprovados nas urnas. Mas, insista-se no fato de que Partidos e candidatos envolvidos com a disseminação de mentiras (fake news) também devem ser inapelavelmente banidos da vida e do debate político local. As formas acima descritas e, outras ainda, que poderão se apresentar são manifestações de violência que destroem a política esta arte de agir conjuntamente em beneficio do bem comum, em defesa dos bens comuns, do mundo compartilhado.

E para finalizar este texto, mas mantendo a urgência e necessidade do amplo e qualificado debate político neste ano de eleições municipais, consideremos a frase do pensador florentino Nicolau Maquiável: “O mundo da política não leva ao céu, mas sua ausência é o pior dos infernos”.

Dr. Sandro Luiz Bazzanella, Professor de Filosofia Política

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