Opinião : o passaporte de imunidade do coronavírus legitima a abertura de novos campos de concentração

Foto: reprodução

A quase não quarentena brasileira, também chamada de lockdown vertical (quando deveria ser chamada de open up this fukng sh*t), dura mais de 90 dias para um total de 10 brasileiros e 50 pets. A paciência dos quarenteners já acabou, enquanto isso, a maioria dos brasileiros ainda não parou em casa: passeios nas praias, visitas a shoppings, viagens de avião, hospedagens em hotéis e tudo aquilo que o dinheiro coloca ao alcance dos afoitos consumidores. Não por acaso, a cidadania brasileira é frequentemente associada ao consumo, à produção e ao pagamento de tributos (não seria à sonegação?): “comprei um carro”, “ganho 300 mil reais por mês”, “eu pago meus impostos” e por aí segue o baile.

Enquanto as elites financeiras, as classes altas e as classes médias brasileiras se regozijam como se nada estivesse acontecendo, as classes mais baixas trabalham sob as precárias condições de sempre, agora somadas à insuficiência ou inexistência de equipamentos de proteção contra o covid-19. Os pobres produzem para que os demais tenham o que consumir – e com o que ($)… Os serviços essenciais para o funcionamento das metrópoles, das cidades são realizados por indivíduos desprovidos dos direitos fundamentais necessários aos cuidados e preservação de suas vidas. Na perspectiva do filósofo italiano Giorgio Agamben, são todos homni sacri, vidas nuas matáveis pelas exigências de um poder soberano que age continuamente em estado exceção e, por esta condição, inimputável de responsabilidade em relação às vidas consumidas pelo coronavírus e outras situações de vulnerabilidade.

Resumindo, o Brasil vive uma alucinação compartilhada intersubjetivamente. O governo genocida recusa auxílio aos necessitados. Pessoas com condições financeiras se cadastram para abocanhar o auxílio emergencial – para comprar cachaça ou para trocar de celular? Muitos que precisam do auxílio não o recebem, mas muitos que recebem não precisam. Os empregadores já fizeram manifestações pela volta das atividades, colocaram os trabalhadores na linha de frente para que se contaminem e, assim, o lumpenproletariado, o exército de reserva do capitalismo seja reduzido e, com a morte dos pobres, menos investimentos sociais se fazem necessários, menos benefícios previdenciários serão pagos. Pensam eles que (setores da classe média, rentistas, capital financeiro), quanto menos investimentos sociais forem necessários, menos impostos precisarão pagar. Como se pagassem muito – os valores dos lucros empresariais partilhados são isentos de imposto de renda…

O estopim da histeria coletiva brasileira em prol da economia foi a manifestação de Maria Van Kerkhove, infectologista responsável pelo time de combate ao coronavírus da OMS, sobre a baixa taxa de transmissão por pessoas assintomáticas – aproximadamente metade dos contaminados pelo coronavírus. Essa frase foi distorcida pelo presidente – que, neste contexto, também pode ser associado ao anjo da morte nazista, Josef Mengele, que disseminou práticas brutais de extermínio nos campos de concentração de Auschwitz – para dizer que pessoas assintomáticas não transmitem o vírus e, assim, pedir a reabertura da indústria e do comércio (rectius: enviar os pobres para o abatedouro).

A situação em que se encontra o país chamou atenção de outros chefes de estado. Como anunciamos no texto anterior, interessa aos países “desenvolvidos” apenas o que produzimos ao custo de milhares de vidas: os produtos brasileiros são importantes, mas os brasileiros são descartáveis. Naquele momento ainda não estávamos cientes dos debates acerca das discussões sobre um “passaporte de imunidade do coronavírus”.

Há notícias de abril sobre a polêmica em torno dessa ideia. Dentre os países que a sugeriram estavam, naquele momento: Estados Unidos da América, Alemanha, Reino Unido, Espanha e Chile. “A proposta é que o documento permita que a pessoa retorne ao trabalho ou não cumpra algumas das restrições impostas pela pandemia, como uma maneira de sair da crise e poder levar uma vida mais normal.” A ideia, assim como quase tudo o que envolve o coronavírus, está à altura das grandes distopias do cinema, bem como de barbáries, extermínios e brutalidades vivenciadas no Ocidente nos últimos séculos até a atualidade.

Não é possível saber se a proposta do passaporte, assim como o open up da economia brasileira, são atitudes canalhas ou estúpidas. Isso porque não precisa de grande inteligência para perceber que nada adianta medir a temperatura das pessoas com termômetros por raios infravermelhos se metade dos contaminados não manifesta sintomas e se nem todos os contaminados têm febre. Tampouco adianta falar em imunidade de rebanho, pois as pesquisas recentes apontam que a imunidade adquirida pelos contaminados dura aproximadamente três meses – o fim da imunidade individual é também a prova da impossibilidade de uma imunidade de rebanho. A única medida para auferir a contaminação é a testagem – coisa que o Brasil não faz suficientemente e, ao que tudo indica, nunca fará!

Resultado disso é que o “passaporte de imunidade” não tem relação direta com o coronavírus, muito menos com a imunidade ao coronavírus. É apenas um pretexto, uma justificação do sacrifício dos trabalhadores da linha de frente. Essa separação discursiva entre “imunes” e “não imunes” perpetua a cisão moderna entre vida biológica e vida política, expressada nas palavras gregas zoé e bios. Daí é possível retirar o “direito” das pessoas “não imunes” à participação nos negócios da pólis (política) e enviá-las a espaços físicos de isolamento. O mesmo discurso justifica também a construção de cidades para as quais os “não imunes” podem ser banidos. A história moderna está prenhe de experiências como essa, cuja mais célebre e trágica são os campos de concentração nazistas, em que a cidadania é subdividida, escalonada, de modo a se ter desde indivíduos enquadrados como subcidadãos até aqueles classificados como animais ou menos do que animais.

Giorgio Agamben, no projeto Homo sacer, especificamente em O que resta de Auschwitz: o arquivo e a testemunha, analisa o campo de concentração para identificar, paradigmaticamente, os traços, as simetrias entre os governos modernos e o governo nos campos de concentração. Uma das principais conclusões do filósofo italiano é o de que o campo de concentração é o paradigma da política contemporânea. Para Agamben, o que caracteriza campo é apresentar-se como um espaço de anomia (um topos sem nomos), de suspensão do ordenamento jurídico necessário a produção de vida nua. Vida nua que se apresenta em sua mera condição biológica, destituída dos estatutos jurídicos que lhe conferem a condição de humana, mas também vida que não se apresenta na condição animal. Simplesmente vida que, em sua condição biológica, pode ser gestada, administrada político, jurídica e economicamente de acordo com os interesses aos quais o poder soberano está a serviço.

É nesta direção que, para Agamben, todos os governos do mundo são ilegítimos, ou literalmente: “Hoje não há na terra um chefe de Estado que não seja, nesse sentido, virtualmente um criminoso”. Ou seja, o contexto pandêmico global revelou os limites da ajuda e da solidariedade internacional, bem como o fato de que as vidas dos indivíduos produtores e consumidores dos países centrais “valem” mais do que as vidas dos países periféricos. Mas, no que concerne aos países periféricos, e, aqui mais especificamente, no caso do Brasil, a ilegitimidade do governo se apresenta em toda sua intensidade na irredutibilidade da defesa dos interesses do sistema bancário, dos rentistas, da economia financeirizada em detrimento das necessidades básicas de sobrevivência de milhões de indivíduos precarizados em sua condição de subsistência.

Estamos diante de um estado governado a partir de pressupostos necrópolíticos, eugenistas com estratégia de manutenção do funcionamento da máquina econômica de plena produção, consumo e endividamento. Ou, dito de outra forma, quando o corpo biológico dos indivíduos se torna o objeto por excelência do poder soberano já não faz mais sentido em se falar de política, na medida em que toda política se transformou em biopolítica, numa gestão, em pleno estado de exceção, da vida nua, dos refugos humanos habitantes do campo de concentração. Neste contexto, não sabemos mais do que estamos falando quando falamos que vivemos em sociedades democráticas, bem como todos os governos representam interesses daqueles que conceberam o campo como fábrica morte.

O projeto de subjetivação dos indivíduos lançados nesse caldo cultural fulmina as esperanças e parece neutralizar a possibilidade de construção, de idealização de novas esperanças. O desequilíbrio entre desejo e gozo, a frustração do choque entre expectativas e realidades pode aniquilar o que há de humano. Resta, então, apenas a vida nua, daí a preponderância das reivindicações vitais por quem não tem esperança na política, bem como o desprezo pelo comum e pela solidariedade pelos indivíduos ensimesmados ou, melhor, abandonados à própria sorte na selvageria do capitalismo neoliberal.

 

1 Comentário

  1. Acho o texto bastante despropositado. Tentativa malsucedida de usar os problemas causados pela pandemia como pretexto para atacar os ideais de política liberal e o capitalismo propriamente dito. Acho que essa discussão já deveria ter acabado; o mundo moderno já provou que o socialismo não funciona. Fica uma referência pra quem quiser se informar. https://www.youtube.com/watch?v=4jW4Tr5Ws30

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