Diante do assunto muito consumido nesta semana sobre a desobrigação do mínimo de aulas nas autoescolas, tenho visto opiniões das mais genéricas, mas algo que incomoda é não ter visto algum dado, alguma base científica ou especialistas na área de trânsito ou mobilidade afirmando que isso iria ser bom para o trânsito.
Mas o que seria bom para o trânsito? Na minha opinião, teríamos somente uma resposta: SEGURANÇA.
Nenhuma decisão no trânsito deveria ser tomada sem que o motivo segurança fosse colocado como primordial. Como posso fazer ou desfazer uma regra se não tenho certeza de que isso irá trazer mais segurança para o trânsito? Se o objetivo não for prioritariamente diminuir o número de sinistros, de pessoas feridas e mortes, qualquer decisão é equivocada.
Estão trazendo as novas regras e a maior justificativa são comparações do Brasil com outros países e isso chega a beirar o mau-caratismo.
Em 27 anos de CTB, o governo não conseguiu implementar a educação para o trânsito nas escolas e em nenhum lugar, agora vai fazer do dia para noite? Nesse tempo todo deixou a mercê dos centros de formação de condutores tentar fazer em dois meses o que deveria ter feito durante a vida toda, educar condutores para o trânsito. Comparar o processo de habilitação dos EUA, Japão, Suécia ou quaisquer outros com o nosso e até entre si é sacanagem.
Primeiro que, mesmo os EUA tendo um método de obtenção mais liberal, não é possível comparação pois lá possuem uma fiscalização muito mais ampla e punitiva, tanto administrativa quanto judicial. Em ambos os casos, não temos nem perto das punições às ocorrências das infrações administrativas e crimes de trânsito do caso americano. Fico imaginando a chance de um condutor em alta velocidade ou embriagado, causando ou não um sinistro no trânsito, sendo abordado nos EUA e o mesmo fato ocorrendo no Brasil: teremos as mesmas imposições? Isso considerando que os EUA não são exemplos para o trânsito em nada; até em acidentes são um dos campeões.
Mas comparar Brasil com Japão, França, Portugal, Suécia, nem sei se vale o comentário: piada de mau gosto. Cultura, processos, punições completamente diferentes entre si e muito mais da nossa realidade.
As autoescolas, que novamente deixarão de ser centros de formação de condutores e voltarão para aquilo que já foram, deixarão de ser os únicos formadores de condutores, que por azar e incompetência do estado hoje são os únicos, para voltar a serem facilitadores para obtenção da CNH. Voltarão ao que foram há três décadas: despachantes de habilitação. Como negócio, até parece ser salutar: sairão de uma centena de obrigações e requisitos para efetuar o ensino-aprendizagem para pouca ou nenhuma, sendo que muitas se voltarão para um único objetivo: facilitar a obtenção da CNH para o cliente.
Diante dessa nova proposta, tenho ouvido a preocupação recorrente sobre o que será das empresas de autoescola. Sendo bem otimista, acho que viverão um esplendor financeiro, podendo ter menos custos. Possivelmente as empresas terão mais rentabilidade. Sendo pessimista e diante das novas obrigações mínimas, certamente muitas pessoas serão demitidas para diminuir o impacto financeiro futuro, mas para as empresas não vejo sentido para maiores preocupações: quem estiver preparado vai sobreviver e com uma a possibilidade de uma lucratividade maior do que a atual, mas a que preço?
Tendo vivido todas as fases possíveis da autoescola e do CFC, inclusive minha escolha, na época, para estudar administração e segurança de trânsito, em 2001, tinha como base a estruturação do moderníssimo Código de Trânsito Brasileiro de 1997, que previa a educação para o trânsito iniciando na pré-escola e terminando no Centro de Formação de Condutores. Como dizia meu pai na época: trânsito é o futuro.
O código de trânsito de 1997 era o modelo que o Brasil tinha escolhido para diminuir o número de acidentes de trânsito que assolavam o país na época. E olha que a legislação federal só foi possível, depois de ser discutida e tramitada por anos nas casas legislativas brasileiras, entendeu-se que precisávamos urgentemente de um modelo de educação e punição muito mais abrangentes do que o do antigo código nacional de trânsito de 1966.
De lá para cá, transcorreram mais de 27 anos para o Brasil assumir seu papel na educação para o trânsito, ou discutir um novo modelo de educação. Passado esse tempo todo, não fez.
O Estado brasileiro deixou, no minguado tempo que a pessoa passa no Centro de Formação de Condutores, para fazer o que nunca fez. E a incrível solução que o Ministério dos Transportes tem para melhorar isso é acabar com o único momento que o cidadão tem, em toda a sua vida, para estudar trânsito. É óbvio que é pouco, é óbvio que não resolve. Com certeza, o Estado precisa assumir sua responsabilidade. É claro que as pessoas precisam vivenciar mais sobre trânsito, mas a solução para isso é assumir seu compromisso, e não tirar o pouco que ainda faz a diferença.
O mais incrível é imaginar que as pessoas estão considerando regredir às regras dos anos 90 como se ainda estivéssemos lá. Não sei se ainda se imagina aprender a dirigir como antigamente quando num dia estava aprendendo a dirigir no colo do pai e, pouco depois, já estar dirigindo pra lavar o carro, indo buscar cigarro pro pai ou rodando pela cidade sem qualquer critério, controle ou responsabilidade legal. Hoje, essa realidade seria simplesmente impensável.
Pelas regras atuais, inclusive com a nova resolução, só é permitido iniciar o aprendizado após obter a LADV, depois do processo aberto no DETRAN, sendo impreterível se penalmente imputável (18 anos), além de saber ler e escrever. Fingir que muitos já chegam aos 18 anos “sabendo dirigir” é, na prática, fechar os olhos para o fato de que menores estão sendo colocados ilegalmente na direção, com o aval silencioso do estado e de adultos e isso já é gravíssimo.
Depois da LADV em mãos, com um instrutor ou numa autoescola, começa o ensino formal tanto nas regras atuais quanto na possível posterior, sendo a única forma legalizada.
Hoje, o aluno é obrigado a cumprir no mínimo 20 horas-aula de prática (equivalente a cerca de 16 horas e 40 minutos efetivos de condução), o que, na realidade, é normalmente muito abaixo do necessário para formar um condutor seguro. Na teoria, exige-se também a carga horária mínima obrigatória. Mesmo assim, é evidente que esse modelo forma condutores insuficientemente preparados para a complexidade do trânsito atual, é pouco hoje? Imagine sem isso.
Pensando em custos, será que alguém imagina ceder seu veículo, com gasolina, manutenção, riscos por 17 horas, achando que não terá custo algum?
Além disso, o processo de habilitação com ou sem autoescola envolve custos elevados, que incluem: taxas, exames médico e psicotécnico, prova teórica, aulas práticas (feitas em algum momento, regulares ou irregulares), prova prática e, muitas vezes, reprovações.
Os Centros de Formação de Condutores (CFCs), além de estarem sujeitos a todas as normas que regem as empresas brasileiras, também precisam cumprir rigorosamente as exigências da legislação de trânsito. Essas obrigações estão previstas, principalmente, na Resolução nº 789 do CONTRAN e nas Portarias do DETRAN, como a de nº 850. Esses dispositivos estabelecem uma extensa quantidade de regras, padrões e responsabilidades que demonstram o alto nível de controle e de exigência ao qual esses centros de ensino são submetidos.
Estamos abrindo mão do único lugar em que se estuda trânsito durante toda a trajetória do brasileiro em vida em detrimento de uma suposta redução dos custos. Isso a que preço? Não seria melhor o Estado abrir mão das taxas e impostos? Ou diminuir exigências aos CFCs? Quem sabe primeiro assumir sua responsabilidade de educar trânsito na escola.
Diante de tudo isso, não se trata de ser a favor ou contra autoescolas, muito menos de defender interesses corporativos, mas sim de defender vidas.
O trânsito não é campo de teste para populismo, improviso ou decisões eleitorais. Se, em quase três décadas, o Estado falhou em cumprir seu papel na educação para o trânsito, não é eliminando o pouco que ainda existe de formação que iremos avançar.
Retirar a obrigatoriedade de aulas não é modernizar o atual sistema, sem um estudo profundo e principalmente sem um novo modelo de ensino aprendizagem, é retroceder; não é incluir, é expor ainda mais pessoas ao risco. Qualquer política pública de trânsito que não tenha a segurança como eixo central nasce errada e cobra seu preço em sinistros, mortes e estatísticas que se repetem ano após ano.
Com o trânsito não se brinca.
Lucio R. Beckhauser, Agente de Trânsito, Especialista em Direito de Trânsito
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Caro Lúcio , trata-se de um projeto eleitoreiro , que não visa segurança pela vida.
Querem mesmo contribuir para melhorar o trânsito ? Basta precificar o custo total da habilitação , valor mínimo e valor máximo , os centros de formação teriam de captar seus clientes ,com preço acessível, bom atendimento e boa formação .Mas para o atual governo, o que importa é arrecadar , sem prezar pela segurança e pela vida .