Opinião | Entre bandido bom e bom bandido: a seletividade da “justiça de bem”

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“Quem vê cara não vê coração”, diz metafórica e enigmaticamente o ditado popular. Ele alerta para o perigo de empreender julgamentos aligeirados, epidérmicos, a partir da breve observação da “cara”, daquilo que aparenta ser, sem que se investigue o “coração”, aquilo que carregaria o ser do que se analisa. Essa metáfora parece ser apropriada ao cenário político brasileiro, onde os fatos carregam inúmeros contextos, interesses, e raízes vinculadas ao histórico sociocultural brasileiro, marcado por violências de toda ordem entre seus cidadãos. O ditado chama atenção, em fundo último, para a necessidade de observar atentamente os objetos analisados, indagando seus pressupostos para além dos discursos conformados hegemonicamente acerca de uma realidade em disputa. Ou seja, trata-se aqui neste texto, diante de dois acontecimentos impactantes ocorridos na cena social e política brasileira, de refleti-los em suas singularidades, sobretudo em suas similaridades, e nos questionarmos sobre o que dizem, explicam ou não a respeito da sociedade brasileira. 

O primeiro acontecimento é o massacre promovido pelas forças policiais do Estado do Rio de Janeiro no dia 28 de outubro de 2025, no complexo do Alemão e da Penha, supostamente contra lideranças do Comando Vermelho. Na referida operação das forças repressivas do Estado carioca cento e vinte quatro (124) pessoas foram mortas, entre elas quatro policiais.  O segundo acontecimento foi a prisão cautelar no dia 22 de novembro de 2025 do ex-presidente Jair Messias Bolsonaro em função de tentativa de violação da tornozeleira eletrônica, que faz o monitoramento judicial de sua movimentação, impedindo que empreendesse fuga do país para eximir-se da pena de prisão de 27 anos e 3 meses, advindo crime de tentativa de golpe de Estado, definidO a partir de trânsito em julgado e respeitadas as garantias das diversas etapas do processo legal.

Para iniciarmos a reflexão apresentamos dois argumentos do filósofo e jurista italiano Giorgio Agamben. O primeiro argumento de Agamben é que vivemos em permanente estado de exceção. Ou seja, o paradoxo das sociedades contemporâneas em que estamos inseridos apresenta-se no fato de que elas encontram-se amparadas, vigiadas e controladas por extensos ordenamentos jurídicos nacionais, mas também por leis, declarações e protocolos internacionais de proteção dos direitos humanos, de defesa da vida. No entanto, em nome do combate ao “terrorismo” (atualizado internacionalmente de forma unilateral pelos EUA como combate aos narcotraficantes e, a diferentes Estados nacionais, considerados pela potência econômica e bélica norte americana como inimigos da democracia e dos valores do Ocidente coletivo, seja em âmbito interno, ou mesmo externo e, sob a justificativa de garantia da lei e da ordem) suspende-se o ordenamento jurídico, as leis, os direitos individuais e sociais e se executa indivíduos e grupos considerados meramente como suspeitos de atividades vinculadas a práticas que promovem o terrorismo.   O Estado desconsidera o ordenamento jurídico, as garantias individuais, a presunção da inocência, o inquérito, bem como o trâmite do processo legal. Simplesmente executa indivíduos e populações sob o argumento da suspeita de ação deletéria à “ordem social”. 

As justificativas oferecidas à opinião pública para a barbárie estatal conformada em pleno estado de exceção se constituem a partir da desumanização das vítimas. Não se apresentam os nomes, os rostos, as histórias de vida, os corpos dos executados. O Estado apenas apresenta as estatísticas dos suspeitos eliminados na ação de forma arbitrária, senão ilegal. A própria apresentação pública das ações (operações) militares é realizada a partir de imagens selecionadas, higienizadas da violência, do sangue, dos cadáveres mutilados decorrente da barbárie perpetrada. Imagens produzidas para serem consumidas pelos espectadores assustados por meio de redes sociais, de telejornais, na suposta segurança dos sofás de suas casas. Alimentadas diuturnamente pelo espetacular discurso de medo e, por decorrência, de ódio aos supostos terroristas narcotraficantes, a opinião pública reverbera positivamente o permanente estado de exceção promovido pelo Estado. A desumanização promovida pelo estado de exceção alcança seu ápice na expressão corriqueira de milhões de vozes que a qualquer momento também podem se tornar alvo da ação do Estado, na expressão: “bandido bom é bandido morto”. 

O segundo argumento apresentado pelo filosofo italiano e que pode nos auxiliar na reflexão sobre os acontecimentos acima situados e que apontam para convergências históricas e sociais presentes no tecido social brasileiro é assim enunciado: “quando legalidade e legitimidade se fundem o Estado torna-se uma máquina letal.” O argumento é sibilino. Fala, senão grita por si só. No contexto do permanente estado de exceção em que nos encontramos inseridos, a barbárie promovida pelo Estado do Rio de Janeiro se legitima pela aprovação da opinião pública. É a gritaria da turba amedrontada, ensandecida, excitada pela intensidade rubra do sangue escorrendo nas telas dos smartphones, das telas de computadores, dos televisores, que confere legitimidade à violência da ação do Estado.  O Estado, agindo em permanente estado de exceção sob a justificativa do combate ao narcotráfico ou ao terrorismo, assume totalitariamente seu direito de uso legítimo da violência, de produzir cadáveres, de executar indivíduos e grupos sociais a partir de seus interesses, de seus cálculos de custo e benefício na manutenção de uma determinada ordem social que lhe interessa. Dispensam-se as instituições, os direitos civis, os direitos individuais e, até mesmo o direito o internacional, o direito de soberania dos povos (no caso da ação dos EUA no Mar do Caribe e em inúmeras outras partes do mundo ao longo do século XX, às primeiras décadas do século XXI), e se passa ao uso da força na intensidade que se fizer necessário para a garantia de uma suposta ordem social, também ela definida pelo Estado, a partir dos interesses que protege e potencializa. 

É neste contexto, que o tema da segurança pública se torna o epicentro dos debates na cena brasileira desprovido do necessário debate público (este sucumbiu às fake news, ao modelo empresarial e neoliberal de gestão dos bens públicos) e urgente reconhecimento da ausência do Estado, de políticas públicas que garantam ao tecido social brasileiro o devido acesso aos bens e serviços públicos. A promoção do permanente estado de exceção interessa à lógica do regime de acumulação do capital que sequestra diuturnamente o Estado brasileiro a serviço de seus interesses (vide a postura afrontosa aos interesses sociais, promovida pelo Congresso Nacional), transformando as questões sociais em caso de ação brutal de polícia, de promoção estatal da barbárie em nome da preservação da ordem, do progresso, do desenvolvimento do capital.

É nesse sentido que a operação ocorrida no Rio de Janeiro em outubro não pode ser considerada meramente uma operação contra o crime organizado. Mas também uma manifestação do poder do uso da violência por meio das forças repressivas do Estado e sua capacidade de legitimação diante da opinião pública.

O segundo fato a ser analisado é a prisão de Jair Bolsonaro. Ela se deu no último dia 22, em caráter preventivo, após a tentativa de violação da tornozeleira eletrônica utilizada pelo ex-presidente.

Bolsonaro é um exemplo de alguém que cometeu crimes, foi julgado e punido de acordo com o devido processo legal. Isto é, teve sua dignidade respeitada enquanto ser humano, respondendo em âmbito judicial pela tentativa de golpe de Estado orquestrada com funcionários e colegas do alto escalão do seu governo. Nesse sentido, apesar de inúmeras análises darem conta de que Bolsonaro deve “pagar” pela ingerência de seu governo durante a pandemia de Covid-19, pela tentativa de superfaturamento e atraso das vacinas, pelas falas desrespeitosas e violentas em relação a minorias sociais, pela homenagem à torturadores da época da ditadura, pelas supostas rachadinhas, suas e dos filhos no exercício de seus mandatos ao longo de suas trajetórias políticas, nenhum desses atentados está em pauta no processo judicial que o condenou à prisão. 

Significa que, nesse caso, a justiça brasileira opera quase que em estado de normalidade, em contraposição ao estado de exceção exercido nas comunidades. A Jair Bolsonaro permitiu-se a ampla defesa que, apesar de ineficaz diante das provas da tentativa de golpe, não foi sequer permitida a inúmeros indivíduos mortos na operação iniciada em 28 de outubro de 2025, que em princípio, ou considerando o pressuposto legal da presunção da inocência, não poderiam ser diretamente vinculados ao crime organizado, senão após minuciosa investigação, produção de provas e composição de rigoroso inquérito que fornecesse provas cabais do envolvimento de tais seres humanos com o crime organizado. A ampla defesa, garantida à criminosos de toda ordem no âmbito do devido processo legal, não foi sequer uma possibilidade a inúmeros outros cidadãos brasileiros mortos em operações contra o crime organizado que, por “mero infortúnio”, circulavam nas comunidades na “hora errada”.

Do ponto de vista da legitimidade do julgamento e prisão do ex-presidente, constata-se que uma pequena parcela da população brasileira não está disposta a reconhecer os mecanismos judiciais para assegurar a garantia da ordem social. Significa, neste caso, abortar o discurso de que “bandido bom é bandido morto” e passar a defender o “bom bandido”, aquele que, se agiu errado, agiu na melhor das intenções. Aquele que foi impelido ao crime por um sistema corrupto, por um contexto específico, por necessidades pontuais… análises das mais profundas sobre os motivos para a ação jamais mobilizada para refletir o contexto a que estão submetidos inúmeros jovens e adolescentes.

Significa, portanto, constatar uma capacidade de diferenciação entre parcelas da opinião pública. Tais parcelas ora compreendem o Estado enquanto necessária força repressora da ameaça do crime – ainda que isso signifique o sacrifício de vidas inocentes –, e ora enxergam no ordenamento jurídico brasileiro uma afronta ao messias, ao bom bandido, cujos crimes estariam justificados na melhor das intenções.

A incapacidade, senão as ambiguidades do poder judiciário, de atuar enquanto poder regulador da ordem e o fato de que, ao longo da história do Brasil, ter por vezes atuado enquanto força repressora a serviço de interesses privados e específicos faz com que não se compreenda bem o que se pode e deve esperar de um ordenamento jurídico e das forças policiais que compõem as instâncias repressoras do Estado –  esta instância que detém o uso “legítimo” da violência sobre indivíduos e populações em função da manutenção do exercício de seu poder soberano. Normaliza-se, assim, o massacre, a violência deliberada e sem razão, a inefetividade de operações contra o crime organizado em detrimento do espetáculo de horrores que é o ceifamento de vidas humanas. É urgente, por isso, voltar ao questionamento que move a República, de Platão: o que é a justiça?

Por fim, mas não por isso menos importante, muito menos com o intuito de encerrar os questionamentos, os debates em torno da violência deliberada no contexto do permanente estado de exceção em que nos encontramos inseridos apontam a necessidade de ter presente a nefasta manifestação de dois brasis, ao que parece irreconciliáveis, mas legalizados (mesmo que ilegítimos) no ordenamento jurídico pátrio. O brasil de grupos privilegiados que têm acesso ao amplo emaranhado de leis, de habeas corpus, entre outros subterfúgios legais, que lhes garantem a impunidade, ou celas especiais, prisões  domiciliares, entre outras regalias e, o brasil de  milhares de brasileiros lançados em condições sub-humanas no sistema penitenciário brasileiro, com celas superlotadas e expostos a todo tipo de violências, atrocidades e, sobretudo, com o desprezo e a desconsideração de parte significativa da sociedade brasileira, que ao consumirem seus serviços, suas energias vitais os consideram descartáveis, meros refugos humanos.

Ainda nessa direção, é necessário povoar o debate político sobre as funções do Estado a respeito das comunidades marcadas pelo domínio do crime organizado. Compreende-se que o poder desses grupos se manifesta especificamente onde o Estado não chega, onde não promove políticas públicas vinculadas à moradia, saneamento, segurança, saúde e educação. As comunidades se constituíram histórica, social e politicamente como válvulas de escape do regime de acumulação, extratos humanos empurrados para fora das cidades onde o valor é produzido, comercializado e usufruído por segmentos sociais específicos. As comunidades periféricas são o palco da tensão entre a ausência do Estado e o poder do crime organizado. Se do ponto de vista da segurança essa tensão se manifesta no perigo sempre presente de operações policiais e confrontos letais, do ponto de vista do bem-estar social ela é brutal no que retira dos indivíduos que habitam tal contexto a possibilidade do exercício pleno da cidadania. Estão sujeitas, por isso, a uma violência dupla, permitida, se não perpetrada, não apenas pelo Estado brasileiro, mas pela sociedade brasileira que ainda enxerga a dignidade da pessoa humana como atributo de humanos específicos.

 

Sandra Eloisa Pisa Bazzanella, estudante e pesquisadora de Filosofia e Sandro Luiz Bazzanella, professor de Filosofia

 

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