Opinião | Eleições municipais IV… e o cavalo caramelo

Foto: reprodução

Iniciamos este texto expressando nossa solidariedade com o povo do Rio Grande do Sul diante do desastre ambiental que acometeu o Estado, ceifando vidas e deixando um rastro de destruição humana, material e ambiental. Em meio à catástrofe identificou-se um cavalo refugiado sobre o telhado de uma construção com o intuito e/ou instinto de se manter a salvo das águas. Após quatro dias naquela perturbadora situação, o cavalo foi socorrido pelo corpo de bombeiros. Ato contínuo ficou famoso nacionalmente. Foi apresentado como exemplo de resiliência frente às dificuldades na luta pela sobrevivência. Tratava-se do cavalo nomeado, a partir de então, como “Caramelo”. O fato ocorreu na cidade de Canoas/RS.

Mas, qual a relação do cavalo Caramelo com as eleições municipais? As evidências indicam que a relação é intensa, senão extensa. Então vejamos! Durante quatro dias a situação vital do cavalo Caramelo se situava e dependia do equilíbrio sobre um telhado. De modo diametralmente inverso, faz algum tempo que nos encontramos no fundo do poço. Mas, estacionar no fundo do poço, não significa que tenhamos encontrado o “fundo do poço”. Tudo indica que é apenas um estágio temporário na medida em que talvez o poço não tenha fundo. Consideremos a situação. 

Faz algum tempo que se manifestam em âmbito local, regional, nacional e até mesmo internacional, posturas negacionistas diante de demandas sociais. Na pandemia da Covid-19 expressou-se o negacionismo científico por parte, sobretudo de políticos e empresários em relação à necessidade do lockdown. A economia não poderia arrefecer a dinâmica de acumulação do capital que se apresenta como um fim em si mesmo em detrimento do mundo e da vida em sua diversidade de formas de manifestação. Quanto às vidas que seriam perdidas? Estas são meros meios a serviço da plena produção e do pleno consumo. Vidas capturadas e conduzidas sob os imperativos do débito e do crédito, dimensões fundamentais (produção, consumo, débito, crédito) para a reprodução do capital. Todo o resto é resto. Meros meios a serem exauridos em suas forças vitais e descartados. 

Ainda no transcurso da pandemia da Covid-19 presenciamos o negacionismo científico que se posicionou contrário à vacinação. Governantes, mas também setores expressivos das mais diversas classes sociais reverberaram mentiras (fake news), teorias apocalípticas sobre as vacinas. De jacarés, a lagartos, lagartixas e, tantos outros répteis e mamíferos seriam transformados aqueles que desavisadamente tomassem a vacina. Teorias da conspiração não faltaram. Tratava-se de um minúsculo chip presente na vacina, que uma vez aplicado no corpo do indivíduo iria manipulá-lo.  Pasmem, o tal chip era produzido pelos chineses para implantar o comunismo no mundo.  Entre as teorias da conspiração não faltou a de certo segmento do mundo evangélico que denunciava uma trama diabólica (chip na vacina) para controlar os crentes e desviá-los da marcha para Jesus. 

Por seu turno, o negacionismo (científico) ambiental é um velho conhecido. Estudos sobre os impactos da ação humana na fauna, na flora, nos solos, nos recursos hídricos e atmosféricos multiplicaram-se nas universidades, nos centros de investigações, nos organismos internacionais, sobretudo, ao longo da segunda metade do século XX. Relatórios das alterações climáticas, de eventos climáticos catastróficos, de demonstração cabal dos limites dos recursos e das condições planetárias para a manutenção da vida foram constantes e, estão disponíveis ao acesso de qualquer indivíduo (ao click do mouse) na internet. Também não faltaram esforços de filósofos convocando ao debate ético sobre a responsabilidade com as futuras gerações. Sobre a urgência de afirmarmos uma racionalidade ético-comunicativa, para a afirmação de consensos sociais e ambientais.   Multiplicaram-se e multiplicaram-se os debates e as iniciativas em torno do estabelecimento dos princípios da bioética, do cuidado e preservação da vida em sua totalidade.

Mas, o negacionismo científico e ambiental se manteve firme em seus propósitos. Propósitos comprometidos com uma visão “espetacularizada” (Guy Debord) de mundo, cujo epicentro e finalidade reside na centralidade economicista e econométrica de mundo (Hannah Arendt), em que (repita-se) a lógica de acumulação de capital articula formas de subjetivação comprometidas com a plena produção, o pleno consumo, como sentido e finalidade primeira da existência humana e social. Lógica de subjetivação que sugere, senão impõe que cada indivíduo deva tornar-se empreendedor, empresário de si mesmo. É a potencialização do indivíduo e sua perspicácia de luta pela sobrevivência numa sociedade individualizada. Segundo esta lógica de raciocínio, o Estado e suas demandas sociais, apenas escravizam e limitam as iniciativas do indivíduo disposto a empreender. Restringe suas condições objetivas de competitividade.  Indivíduos que não empreendem, não alcançam prosperidade econômica e social. São indivíduos fracassados. Refugos humanos.  Enfim, formas de subjetivação patrocinadas pelo capital articuladas a técnicas de governos de indivíduos e populações a partir da binária lógica do crédito e do débito. Concepções e práticas que produzem esvaziamento da dimensão ontológica da política. 

Assim, também a política se transformou em mero meio, desprovido de finalidade, de compromisso com o debate público, com a afirmação de consensos em torno de interesses comuns, comunitários e sociais. O cidadão, portador de cidadania, cuja etimologia (origem) da palavra remonta a Grécia e Roma Antigas, implicava o comprometimento com a polis, ou com a civitas, foi reduzido na modernidade (nos últimos 300 anos), no âmbito dos Estados modernos a uma figura jurídica portador de direitos e deveres. Entre os seus direitos, talvez o mais relevante seja o direito do consumidor. Entre os seus deveres está o de votar. No Brasil, votar não se apresenta como dever, mas como imposição dos poderes de Estado sobre os indivíduos. De tal sorte que o cidadão é um ente funcional e funcionalizado para reprodução de uma política estatal que não o representa, bem como de uma sociedade compatível com as exigências de concentração de capital, de captura da riqueza socialmente produzida por minorias nacionais e globais.

Pois é Caramelo, sua espécie domesticada há milhares de anos pelos seres humanos não desenvolve linguagem complexa, formas de vida compartilhadas como estratégia de busca da felicidade. Você não participou e não participa com seus semelhantes equinos de debates públicos, de articulação entre pares para manutenção e preservação das pastagens, dos usos coletivos dos espaços necessários a continuidade da vida de sua espécie. Seguramente vocês não negam a ciência. Não há manifestação de anti-intectualismo, ou de teorias da conspiração entre vocês. Provavelmente vocês não perdem tempo com debates ideológicos sobre “escolas cívico-militares”, “escolas sem partidos”, “a imoralidade da educação sexual nas escolas”, ou mesmo, o preconceito ideológico segundo o qual as ciências humanas são todas de esquerda oprimindo a indefesa direita. Parece-me que também vocês não passam o dia produzindo fake news e distribuindo tais obtusidades entre o vosso rebanho equino.  Também é preciso considerar que vocês desconhecem os impactos climáticos produzidos pela espécie que os domesticou.  Mas, o fato determinante é que você passou quatro longos dias se equilibrando sobre suas quatro patas naquele telhado. Ufa, que tédio para quem não tem paciência para esperar 5 minutos. Que cansaço! Esperar de pé sobre um telhado após anos de jornadas de trabalho explorado. Vida de cavalo não é tarefa simples.

Negacionismos. Uso indevido do solo. Especulação imobiliária. Aterros de toda ordem para aproveitamento de áreas urbanas e rurais. Desmatamento de encostas, de morros, de mata ciliar. Canalização de córregos e riachos que atravessam o perímetro urbano.  Destinação precária do lixo, espalhado pelas ruas e calçadas das cidades, das rodovias. Planos diretores elaborados por tecnocratas, a serviço dos interesses dos investidores, dos lobbies imobiliários. Ausência de debate público com amplos setores da sociedade sobre as formas de organização e distribuição do espaço urbano, da cidade (novamente o plano diretor).  Ausência de políticas públicas e programas governamentais promovendo o debate e a organização pública da cidade.  A expulsão de massas de trabalhadores (formais, informais), de desempregados, de refugos humanos para as periferias da cidade.  A interdição de certos espaços e bairros da cidade para os indivíduos empurrados para as periferias. A construção de condomínios fechados em áreas nobres da cidade para determinados segmentos sociais… é tudo isto Caramelo e, mais tantas outras questões sociais e políticas inerentes à forma de organização de nossas sociedades acima descritas que produziram e continuarão a produzir as tragédias ambientais, humanas e sociais vistas, compartilhadas, curtidas, disputadas politicamente, objeto de mentiras públicas e, que fez você (por sorte) manter-se firme por dias sobre o telhado para salvar o próprio couro.

Caramelo, sem devolver a política à sua dimensão ontológica, ou seja, ao seu uso comum, cotidianamente exercitada pelos cidadãos, continuaremos reféns da política institucionalizada na forma de mero meio sem fim (Agamben). Ou dito de outra forma, enquanto a visão de mundo, de vida, de condição humana, de compartilhamento humano dos espaços públicos, dos bens públicos necessários à afirmação da vida, com dignidade, justiça social e preservação ambiental para os presentes e futuras gerações, permanecem reféns de um modelo de produção de vida concentrada em instituições, lideranças e práticas comprometidas com a racionalidade instrumental do capital e de suas máquinas econômicas, jurídicas e políticas que produzem em quantidades absurdas vidas precarizadas, de refugos humanos, conviverem com a dor, o sofrimento e a morte gratuitas. 

É imprescindível Caramelo descer do telhado com as próprias patas. Descer do telhado com as próprias patas equivale a agirmos, nós mesmos, para devolver a política ao uso comum. A polis, essa dimensão comunitária, não parece contar com salvadores, e nem pode se fiar em figuras que prometem tal salvação.  Ou seja, urge devolver a política ao uso comum. A polis, a cidade-comunidade é um bem comum. Ela pertence a todos. Um recém-nascido qualquer tem o direito à cidade como condição necessária para realização plena de sua existência, independente de condição étnica ou econômica de origem.  A polis não pertence a lógica instrumental de um modelo econométrico concentrador da riqueza e paradoxalmente, produtor de sofrimento e morte.  

Choremos os mortos. Não precisava ser assim. Lamentamos as perdas materiais. Criticamos veementemente a espetacularização midiática de toda e qualquer tragédia ambiental advinda da emergência climática em curso. A espetacularização “naturaliza” e impede o debate sobre as causas do problema. A espetacularização sugere que desastres ambientais “sempre existiram” e, esperemos o próximo para obter novas e melhores imagens.  Mas, nestas eleições municipais que se aproximam, retomemos a política cotidianamente e publicamente, sem mentiras, por favor, sem salvadores da pátria, sem oportunistas e profissionais da política. Não precisamos desses operadores dos interesses de minorias que compram e vendem a cidade, que fraudam licitações públicas, que se locupletam com o patrimônio público e tantos outros negócios escusos que promovem desastres ambientais. 

Retomemos o debate político para debater a cidade, os programas políticos eleitorais dos candidatos. Analisemos as propostas de políticas públicas, de programas de governo que se comprometam com a promoção de vida, com os bens públicos necessários à qualidade de vida da comunidade.  E, sobretudo, Caramelo… entre nós humanos é sempre necessário solicitar que os indivíduos não transformem seu voto numa mercadoria, que não vendam o voto, pois tal atitude além de destruir a política do comum, da comunidade produz desastre ambiental, humano, sofrimento e morte.

Sandro Luiz Bazzanella, Professor de Filosofia

1 Comentário

  1. O cavalo representa o povo, água ar redor o atual governo.Melhor ficar longe, a água é traiçoeira.

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