Opinião | Autoritarismo em nome da democracia

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A ordem de busca e apreensão autorizada pelo “supremo” juiz A. de Moraes nas residências de empresários foi um arbítrio. O juiz não consegue justificar a necessidade do ato e revela não estar à altura do cargo. Não obstante, sua atitude e até mesmo as opiniões de alguns desses empresários revelam o paradoxo de um país institucionalmente democrático na forma e autoritário no conteúdo.

O juiz errou porque ordenou a invasão de um ambiente privado em que dizemos coisas que não diríamos, nem faríamos em público. Do contrário, a maioria de nós seríamos assassinos até que fôssemos assassinados. Nossas relações seriam raras e efêmeras, não haveria organização social, economia, política, tampouco civilização e tudo não passaria de entropia como no início dos tempos.

É difícil dizer isso sem incorrer no elitismo, mas o mencionado juiz parece um ascendente social, muito esforçado, mas que, diante da grandeza do cargo, não o exerce à altura. No ímpeto de uma ambição heroica de revista de quadrinhos, sua defesa da democracia é paradoxalmente autoritária.

Se quer comento as opiniões dos tais “empresários bolsonaristas”, já que discordo da decisão em divulgá-las. Mas, digo que não é preciso concordar com elas para perceber o erro da Justiça. Alguns podem considera-los capitalistas fedorentos e outros vê-los como empregadores. São o que são e constituem a diversidade opinativa, mas não ameaçam a democracia. Nem têm poder pra isso.

Portanto, mobilizar o aparato jurídico e policial foi um desperdício e um erro, tanto que, constrangido, o juiz desobstruiu o segredo de justiça. Forçado a justificar sua decisão, apresentou um organograma golpista de precária comprovação. Pra quem viu isso, essa ficção mais lembra aquele organograma da corrupção do infante ex-procurador de Curitiba. Ruminação de sonâmbulo, faltou-lhe uma boa noite de sono e o juízo recobrado.

Falta conexão do Judiciário com o mundo real. É o ensimesmamento e a intocabilidade do poder que gera essas sensações, por vezes, alucinógenas. É claro que atos do executivo e verborragias de anticomunistas de apartamento com sotaque de ator de telenovela estão do outro lado. Fake News também, embora elas não tenham começado agora, mas, ali atrás, com a narrativa mentirosa do “nós contra eles”.

Mas, as vezes uma análise engajada se torna um best-seller e conecta ativistas progressistas com juízes consequencialistas. Aí, ambos se sentem ungidos da “consciência” apocalíptica sobre “Como as democracias morrem” (Levitsky & Ziblatt) e se convencem de salvar a democracia, como a turma do ex-juiz de Maringá. É a mesma coisa.

Convicções justificam ações e movem a história, como se ela tivesse um curso predefinido, que alguns sábios, moralmente superiores, pudessem decifrar. É nada mais que uma visão grosseira do que representou a Filosofia da História, honestamente apresentada por uns e grosseiramente mal interpretada por outros.

Filosofia da História à brasileira, nos anos sessenta vingou a convicção de que só uma intervenção autoritária, por uma elite esclarecida, salvaria a democracia brasileira. Tal convicção justificou a assunção dos militares ao poder. Não é tão simples de explicar, mas aquilo provocou um desequilíbrio entre os poderes, além do protagonismo político das Forças Armadas e um equívoco na opinião pública sobre o seu papel, até hoje.

Tudo isso expressa nosso imaginário autoritário, revolucionário ou reacionário. De liberais e conservadores pouco temos, nada entendemos. No geral, todos saem e chegam ao mesmo lugar. E o mencionado juiz nada mais é do que o resultado de uma escolha randômica muito previsível numa sociedade predominantemente autoritária.

Mentalmente, esse cidadão pouco difere do idiota que acredita no líder messiânico e desconhece o valor da liberdade. Nem imaginam ambos, que a nação surge do trabalho livre que começa no município e não de uma caneta em Brasília. Depois, boa parte desse trabalho vai sustentar uma elite burocrática e patrimonialista, desconfiada, ingrata e alheia ao homem comum que lhes garante o bolsa toga.

É esse alheamento do mundo real que impede um juiz de entender o que significa acordar todo dia às cinco da manhã pra não viver às custas alheias e ter o direito de resmungar de vez em quando.

Ouça o podcast com a coluna comentada:

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