Opinião | A banalidade do mal

Foto: reprodução

O brutal assassinato de quatro crianças numa creche em Blumenau e os ferimentos provocados em outras crianças no mesmo educandário nos coloca diante da urgência do debate público em torno da banalidade do mal. Infelizmente este trágico acontecimento não é um fato isolado. Nos últimos anos (Brasil registrou 12 ataques com armas de fogo em escolas nos últimos 20 anos …)[i] “assistimos” a bárbaros acontecimentos desta natureza em nossas comunidades, em nosso país no Brasil.

Este fenômeno necessita ser compreendido e debatido socialmente em suas múltiplas variáveis como forma de posicionamento, de ação social e governamental.  Evidentemente são múltiplas as variáveis implicadas na análise de fenômenos desta natureza e, não é nossa pretensão apresentar análises eivadas pela vontade de verdade e, portanto conclusivas sobre tais fenômenos.  Também não faz parte de nossa proposta reflexiva apresentar soluções imediatas para o fenômeno para além das iniciativas sociais e legais cabíveis em situações deste gênero, muito menos reverberar argumentos e discursos radicalizados advindos do impacto humano e social que fenômenos desta natureza provocam na opinião pública.

Antes de adentrarmos na problematização da barbárie que vitimou crianças em Blumenau é preciso considerar que a violência física sobre o corpo, a integridade e a vida do outro é uma constante na trajetória do Brasil colônia à atualidade.  É preciso rememorar e reconhecer a barbárie perpetrada sobre os povos indígenas, outrora escravizados, atualmente assassinados por defenderem seu território, expostos a exploração de suas terras, de suas águas e, portanto condenados à morte pela destruição de seu modo de vida. Rememoremos os 320 anos de escravidão negra no Brasil colônia, até 13 de maio de 1888 (um ano antes da “proclamação da república”).  Aprisionados em solo africano, os negros que sobreviviam à travessia do Atlântico eram submetidos às formas mais cruéis de violência no contexto do trabalho escravo. Rememoremos os preconceitos, a discriminação, que ainda persiste socialmente sobre os corpos e mentes dos indivíduos pardos, negros, afrodescendentes em curso em nossa sociedade multiétnica na atualidade.  Rememoremos a violência das execuções levadas adiante pelas forças coercitivas do Estado durante a ditadura militar de 1964-1984. Torturas, desaparecimentos, execuções. Impunidade. Rememoremos a ação policial na comunidade do “Jacarezinho/RJ (Massacre no Jacarezinho completa um ano com 24 das 28 mortes arquivadas pelo MP)[ii], na comunidade da vila “cruzeiro/RJ”( Não foi uma operação, foi um massacre”, relata morador da Vila Cruzeiro (RJ )[iii].

A rememoração da barbárie, da brutalidade, da violência contra homens, mulheres, jovens, adolescentes e crianças na sociedade brasileira é interminável e cotidiana.  Reconheçamos que a barbárie, a violência física e simbólica é marca distintiva das relações sociais que perpassam a trajetória e o cotidiano da sociedade brasileira. O mito da cordialidade, da hospitalidade do povo brasileiro não resiste a observação atenta ao cotidiano da vida dos trabalhadores, dos aposentados, das mulheres, das crianças, dos negros, dos pardos, dos homo afetivos, dos pobres, do trânsito, etc.  Mas, qual a relação entre a herança de violência circunscrita no  ethos escravocrata constitutivo do tecido social brasileiro e a barbárie cometida na creche que vitimou crianças em Blumenau? Se o tecido social brasileiro foi forjado sob a violência do ethos escravocrata porque a barbárie perpetrada na creche nos incomoda?  Estamos diante da decadência do tecido social brasileiro? Estaria a sociedade brasileira e ocidental doente reverberando na violência seu mal-estar? Ou apenas estamos diante de uma de suas formas cotidianas de manifestação?  Porque o autor da barbárie (e de outras deste mesmo gênero) a executa contra crianças indefesas? O que motivou o autor levar adiante seu bárbaro plano de execução das crianças? Bulling sofrido na infância? Humilhações advindas de seu ambiente de trabalho? Precariedade de sua vida econômica e social? Distúrbios psicossociais advindos do período de isolamento imputado pela pandemia? Modo de vida excessivamente individualizado? Perda da dimensão pública da vida? Indiferença às questões humanas e sociais? Excessiva exposição à fake news e a discursos de ódio em relação ao outro, ao diferente?  Corrosão da autoridade pelo cultivo cotidiano da impunidade? Exposição cotidiana real e virtual a situações de violência extrema? O que fazer? Punir de acordo com o rigor da lei? Reunir especialistas e autoridades para debater o problema e apontar soluções? Implantar em todos os níveis da educação básica e fundamental escolas militarizadas? Disponibilizar seguranças nas portas das escolas? Instalar mais portas e detectores de metais? Treinar e armar os professores? Instalar mais câmeras de vídeo? Monitorar a internet e as redes sociais?

A questão é urgente. A barbárie adentrou a escola, a creche. Mas, já está dentro dos lares faz bom tempo manifestando-se na violência doméstica, no feminicídio. É preciso comprometer-se com o debate público sereno, mas profundo sobre a natureza e manifestação deste brutal fenômeno.  E porque não iniciar este debate social analisando os investimentos governamentais em educação? Para o Estado (em âmbito municipal, estadual e nacional) e seus governantes de plantão educação é despesa ou investimento? Qual a qualidade da educação pública oferecida aos brasileiros? Quais as condições de trabalho de que dispõe os professores para executarem com excelência seu trabalho de educadores? Os professores são remunerados de acordo com a importância de sua ação profissional? Qual a diferença salarial dos professores em relação aos salários do poder judiciário, do poder legislativo e executivo nas três esferas de poder? Qual o reconhecimento social dispensado aos professores? Porque professores são agredidos em sua liberdade de cátedra? Porque diante da histórica e vergonhosa precariedade educacional brasileira surgem grotescos debates e propostas como “escola sem partido”, ou “escolas militarizadas”? Porque pais e professores não são ouvidos diante das urgências educacionais do país? Porque os poderes de Estado apoiados pela estupidez de significativos segmentos sociais exportam para a Escola em sua precariedade operacional problemas sociais? Estratégia para dissimular problemas sociais próprios de uma sociedade forjada na violência do ethos escravocrata? Porque após quinhentos anos de trajetória societária não dispomos de um projeto educacional de excelência para crianças, adolescentes, jovens e pesquisadores? Porque as elites políticas nacionais desconsideram as justas e urgentes demandas educacionais para a formação humana, científica e laboral de excelência? Numa sociedade mantida na precariedade da luta pela sobrevivência na periferia do mundo trata-se apenas de formação de mão-de-obra precária e barata para o mercado de trabalho?

Ignorar estas questões (entre outras tantas que poderiam ser apresentadas) implica em desconsiderar o fenômeno da barbárie que viceja no tecido social brasileiro, manifestando-se brutalmente na tragédia da morte das crianças da creche de Blumenau e, em algum momento em qualquer outro educandário do país.  A compreensão do fenômeno exige que paralisemos as respostas prontas, a verborragia das autoridades políticas, judiciárias, policiais, entre outros especialistas de plantão anunciando medidas, promessas de justiça a partir da aplicação do ordenamento jurídico. É preciso paralisar a exaltação dos discursos que reverberam mais violência e barbárie nas fórmulas prontas: “bandido bom é bandido morto”; “Pena de morte esses monstros” , entre outras expressões deste gênero.

Ignorar as questões acima apresentadas é desconsiderar que a precarização da vida individual e social promovida por uma ordem político-econômica predatória do humano, do meio ambiente, dos bens naturais compartilhados em suas mais diversas dimensões promove a violência e a barbárie compartilhada cotidianamente na indiferença, na ausência de empatia com o outro, na ausência de disposição dos indivíduos superarem a privatização de si mesmos e se comprometerem com o debate público necessário à constituição e garantias de um mundo humanamente e vitalmente compartilhado.

Diga-se uma vez mais, ignorar tais questões é aceitar passivamente a condição de meros consumidores de produtos, de entretenimento de baixa qualidade, de propostas educacionais desprovidas do rigor qualitativo para constituição de uma sociedade suficientemente desenvolvida. Hannah Arendt em seu seminal livro: “A Condição Humana”, demonstra que o consumidor estabelece uma relação de destruição com o mundo.  O ato de consumir é marcado pela destruição do produto, do bem de que se dispõe como condição de saciar momentaneamente o desejo majoritariamente imposto publicitariamente e socialmente exigido. Destruir, descartar parte do produto, das embalagens é marca registrado do consumidor.   O indivíduo elevado à condição de consumidor consome a si mesmo, ao outro, ao mundo socialmente compartilhado. Não cuida e não promove o mundo. Destrói a sensibilidade necessária a potencialização do mundo.

Para concluirmos, mas de forma alguma com a pretensão de finalizar este debate, ignorar as questões apresentadas significa aceitar tacitamente o fato hediondo de estarmos inseridos integralmente numa guerra civil local, nacional e mundial, desprovidos de disposição de cuidado com mundo comum resultante da ação política qualificada. Nestas condições sociais, estamos condenados a presenciar de tempos em tempos a brutalidade da barbárie que ceifa a vida de crianças que se apresentavam como a garantia e a esperança de que o mundo teria continuidade. A brutalidade da morte das crianças implica no fato de que a sociedade perdeu parte das garantias de continuidade e renovação do mundo. Trágica e irreversível condição. A urgência deste brutal acontecimento requer imediatamente nosso envolvimento no debate e nos esforços de manutenção de um mundo comum, humanamente compartilhado com a diversidade de formas de vida que ainda resistem neste planeta. 

Sandro Luiz Bazzanella, professor de Filosofia.


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