Opinião | Surdos, cegos e mudos para a realidade do povo: loucos por poder e dinheiro

Imagem gerada com IA

Neste nosso tempo, de surpresa a cada nova esquina da vida, o ineditismo transformou o desenrolar dos fatos em clichê “de coisas históricas”. Parece até que abrimos um livro que, no recheio, guarda para cada página uma notícia transformadora, um detalhe que muda tudo que era certeza. Entre tantas reviravoltas, perdemos a capacidade de distinguir o verdadeiramente extraordinário do meramente escandaloso. O histórico do histérico.

É neste cenário, de permanente perplexidade, que a sabedoria atemporal de Khalil Gibran nos oferece uma bússola. Recorro ao trecho de “O Louco” para iluminar o momento. Houve em certa ocasião, conta o autor, que um rei poderoso e sábio na distante Wirani, era temido por sua força e amado por sua sabedoria. No coração desta cidade havia um único poço de água fresca e cristalina, do qual todos bebiam – reis e súditos, nobres e plebeus. Não havia outra fonte.

Uma noite, enquanto todos dormiam, uma bruxa despejou uma receita maligna no poço que enlouqueceria os que bebessem dessa água. Na manhã seguinte, todos os habitantes, exceto o rei e seu lorde camareiro, degustaram e sofreram as consequências desejadas pela velha má de verruga no nariz. E então o povo começou a surtar, acusando justamente o rei e seu lorde camareiro de perderem a razão. “Não podemos ser governados por um rei louco”, diziam.

Diante da pressão popular, o rei ordenou que trouxessem um cálice de ouro com a água do poço envenenado. Bebeu um grande gole e o ofereceu ao seu lorde camareiro. “E houve uma grande celebração na distante cidade de Wirani, porque o rei e seu lorde camareiro tinham recobrado a razão”. A terrível ironia da parábola é na verdade a própria loucura coletiva.

Observando nossa paisagem política atual, me pergunto: quantos de nossos representantes beberam dessa água turva que transforma democracia em ameaça, diálogo em confronto, e realidade em ficção conveniente? Pelo menos três parlamentares catarinenses escolheram saciar sua sede nessa fonte duvidosa, embarcando numa tentativa vergonhosa de tomar de assalto as instituições que deveriam proteger.

É preciso dizer com todas as letras: é perfeitamente possível discordar do governo de ocasião, fazer oposição firme ao PT, questionar políticas públicas e até mesmo não gostar pessoalmente do presidente Lula. A democracia se alimenta justamente dessa diversidade de opiniões, do embate de ideias, da tensão criativa entre diferentes visões de mundo. O que não se pode – e jamais será aceito – é que essa discordância se transforme em ataque às regras básicas de convivência democrática.

Não dá para convergir a lógica dos dias com realidades paralelas como se fossem verdades absolutas. Nem para desejar que crimes sejam perdoados por questões ideológicas. Ou para fingir que tentativas de golpe são meras “manifestações patrióticas”. A loucura coletiva tem nome: é quando perdemos a capacidade de distinguir entre oposição legítima e sedição.

Enquanto isso, Trump prepara seus embargos tarifários contra o Brasil, lembrando-nos que a geopolítica não tem tempo para nossas fantasias internas. O mundo real – aquele que nossos representantes parecem ter esquecido – continua girando, apresentando contas que precisam ser pagas com competência, não com teatro.

A ironia é amarga: aqueles que se dizem defensores da pátria são os mesmos que a expõem ao ridículo internacional. Estes que vestiam-se de periquitos verde e amarelo são os primeiros que correm para beijar botas estrangeiras quando conveniente. Aqueles que gritam supostamente em nome do povo são os que menos escutam suas reais necessidades da população.

Como na parábola de Gibran, a loucura se disfarça de lucidez. O povo brasileiro, esse que luta diariamente para sobreviver, que precisa de emprego, saúde, educação e segurança, assiste perplexo a essa encenação. Surdos às suas súplicas, cegos às suas necessidades, mudos diante de seus clamores, nossos representantes preferem beber da água envenenada do radicalismo, da intolerância, do autoritarismo.

Talvez seja hora de nos perguntarmos: quem realmente enlouqueceu nesta história? Aqueles que defendem as instituições democráticas ou aqueles que tentam derrubá-las? Todos que buscam o diálogo ou quem prega o confronto? Aqueles que respeitam o resultado das urnas ou aqueles que só aceitam democracia quando ganham?

Na distante cidade de Wirani, o rei bebeu da água envenenada para agradar ao povo. Aqui, em nossa não tão distante república tropical, alguns escolheram o caminho inverso: envenenaram o povo para agradar a si mesmos. A diferença é que nossa história ainda está sendo escrita, e cabe a cada um de nós decidir se queremos beber dessa água ou se temos coragem suficiente para procurar uma fonte mais limpa.

A insanidade não está em discordar ou concordar com um governo. A sandice vive em fabricar realidades paralelas, em tentar empurrar o país para dentro do poço da ignorância, como se isso fosse “a cura”. Mas beber dessa água não nos salva: apenas nos faz esquecer que a vida real, com suas contas, suas filas e sua fome, continua à espera de quem ouse ficar sóbrio.

No fundo, é simples: a democracia não é perfeita, mas é o único copo de água limpa que temos. O resto é feitiço. A democracia brasileira merece representantes que tenham sede de justiça, não de poder; que tenham fome de diálogo, não de confronto; e que a loucura de cada político eleito esteja em servir o povo, não por se servir dele.

O que podemos exigir – não pedir, mas exigir – é que até que as urnas cheguem novamente e o povo possa renovar este espetáculo democrático, nossos representantes tenham ao menos a decência de parar de fingir que sua loucura coletiva é a nossa razão. E que também parem de nos oferecer o cálice dourado do extremismo como se fosse o elixir da sanidade. O Brasil real – aquele que trabalha, que luta, que sonha, que constrói – este Brasil não enlouqueceu. E não pretende beber dessa água.

Tarciso Souza, jornalista e empresário

2 Comentário

  1. Quem primeiro beijou as botas dos EUA foi Zanin, ao pedir socorro aos EUA e a Europa dizendo que seu cliente estava sendo perseguido politicamente no Brasil .Gleise Hoffmann fez igual e tantos outros quando tentaram salvar seu líder da cadeira ou retirá-lo de lá.
    Não é o poço que tem aguas turvas , são as mentalidades dos ideologistas cegos que defendem um presidente e sua quadrilha que estão fazendo de tudo para transformar o país em uma Venezuela .
    Pergunte as pessoas da raça negra o que acharam do discurso do presidente sobre uma foto ” Porque colocar um homem banguela e AINDA NEGRO na foto” …..este “rei ” que tantos idolatram, é a bruxa com verruga no nariz e pelo jeito muita gente esta bebendo desta agua e escrevendo sobre sua “”bruxinha” favorita.
    Mas muitos ficaram sem beber desta agua, pois é preciso pagar e somente com cartão de crédito .

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