Opinião | Rio Grande do Sul 2024. Qual é o plano?

Foto: Erison Krueger/Reprodução via ND

“Para que a utopia renasça, é preciso confiar no potencial humano de reformar o mundo.”

Zygmunt Bauman (1925-2017)

Esse é o problema, não temos plano. Nossas lideranças e governantes em todos os níveis não têm planos, estamos todos perdidos, confusos e cansados, além disso os interesses do capital dominam tudo, decidem tudo, inclusive desfigurar o Código Florestal, a legislação ambiental e os planos diretores para garantir a especulação imobiliária, a expansão urbana, inclusive em margens de rios, áreas alagáveis, encostas de morros e outras áreas de risco. Não temos capacidade de superar esse poder econômico que favorece sempre uma minoria, o neoliberalismo vem destruindo toda a ideia de planejamento desde a década de 1980, suas estruturas, conceitos, recursos humanos, acúmulo técnico, investimentos e políticas públicas; planejar e medir os impactos e resultados previamente, não interessa para os detentores do poder econômico, pois isso cria limites, áreas onde não se pode construir e explorar, e regras para que sejamos capazes de continuar existindo e habitando esse planeta.

Mas as coisas mudam, as pessoas mudam, as cidades mudam! Vivemos tempos de mudança, gostemos ou não, que irão impactar nossas vidas de forma intensa e profunda neste século de emergência climática, não temos mais escolha, é isso ou morrer.  A partir deste fato inevitável, é preciso superar o negacionismo e as fake news e fazer as perguntas certas, para evitar o risco da alienação, do equívoco e principalmente, investir energia, tempo e recursos para responder da melhor forma possível, as perguntas erradas.

Neste sentido, a pergunta que queremos formular é “quais são os novos requisitos para pensar e planejar cidades resilientes e em transição para as pessoas no século XXI?”. O que precisamos deixar de acreditar e fazer para que se abram essas novas possibilidades, mais sustentáveis, mais equilibradas, mais saudáveis, mais eficientes e mais inteligentes?

O primeiro requisito é perceber e reconhecer que os modelos, padrões, metodologias, objetivos, prioridades e ideias anteriores não funcionam mais, não estão adequados aos desafios do século XXI, estão falidos e ultrapassados. Eu sei que isso dói, é desconfortável, pois estamos vivendo neste modelo desde o século passado. Tudo que fizemos até aqui está ancorado em modelos mentais, políticos, estratégicos e filosóficos do século passado, com raras e honrosas exceções. Ocorre que o ser humano sempre prefere permanecer na zona de conforto, prefere manter o que ele acha que “deu certo até agora”, e isso é uma característica difícil de superar, pois está presente no cidadão, no político, no técnico e até nos líderes e empresários. Outra característica que nos atrapalha é a memória coletiva curta, ou seja, quando a dor passa, as coisas começam a voltar ao normal, esquecemos rapidamente as lições aprendidas, a urgência e a necessidade de mudança estruturada e planejada.

O segundo, tão importante quanto, é reconhecer que não somos capazes de mudar sozinhos, que não sabemos, que precisamos do outro, do diferente e de todos os tipos de recursos disponíveis para aprender e descobrir os melhores caminhos para cada realidade e suas vocações e características. Mesmo não sabendo, temos que tomar a decisão e agir, começar, iniciar essa construção do que será a cidade resiliente e ecológica do amanhã, ou seja, trabalhar a partir de um horizonte de médio e longo prazo. Aqui há outra armadilha, cada vez mais somos moldados pela velocidade, pelo imediatismo, pelo individualismo, pelo hedonismo e até pelas fake news, queremos tudo pra ontem, mas o planejamento de cidades não é assim, requer tempo, amadurecimento, conhecimento, prioridade no coletivo e no público, para implantação de políticas públicas, programas, projetos e obras, sempre com objetivos, metas e indicadores, que estes sim, vão apontar já no curto prazo, se a direção proposta está correta, atende os desejos da sociedade e apresenta os resultados “planejados” e desejados.

 O terceiro requisito é TER UM PLANO! Qual plano? Obviamente um que não esteja baseado nas soluções do século passado ou em mentiras propagadas por oportunistas das mídias sociais, ou seja, não se trata de grandes obras de infraestrutura para mudar a dinâmica da natureza, tentar torturar e impor nossas necessidades e visão aos ecossistemas de cada região, mas conviver em harmonia com a fauna, a flora, as águas, a topografia, a geologia e com as demais características do território ocupado, muitas vezes de forma inadequada por nós. 

Esse plano precisa resgatar e sensibilizar a sociedade do século XXI quanto a centralidade do planejamento, do pensar a médio e longo prazo e de trabalhar com metas e indicadores capazes de provar e nos mostrar se estamos no rumo correto, pensando não apenas em lucro, mas nas pessoas, no equilíbrio do meio ambiente e no interesse coletivo desta e das próximas gerações.

É claro que para uma mudança assim profunda, radical e definitiva, precisamos entrar num período e modo de transição, as cidades em transição, pois por melhor que seja o plano e os projeto, estamos falando de pelo menos 20 ou 30 anos para que as cidades brasileiras estejam repensadas, redesenhadas e adaptadas à transição energética condicionante para o clima, com desastres urbanos recorrentes que estamos presenciando aqui e no mundo. Isso vai exigir a reconstrução de toda a estrutura de planejamento regional e territorial do Governo Federal, agora com ênfase na transição climática e segurança territorial, não para centralizar as decisões, mas para coordenar o plano, compartilhar soluções e conhecimento, definir diretrizes, distribuir recursos e fiscalizar a qualidade, implementação, resultados e impactos na vida das pessoas, cidades e regiões.

São vários objetivos nessa transição das cidades brasileiras, mas o prioritário nesse momento é reconstruir as cidades gaúchas considerando as melhores técnicas e exemplos do mundo, realocar todas as casas e pessoas em áreas mais sensíveis e suscetíveis a eventos climáticos, criando cidades sustentáveis, com boa arquitetura, espaços públicos, ciclovias, arborização urbana e criando parques públicos em todas as áreas desocupadas – cidades esponja, capazes de absorver e conduzir as águas para o subsolo e diminuir sua velocidade. Muita atenção, a tendência é que o poder econômico e a especulação imobiliária pressionem políticos para que todas as áreas desocupadas, depois de algum tempo, voltem ao mercado para “gerar investimentos, impostos, empregos e desenvolvimento econômico das cidades”, o falso argumento que usam faz 50 anos e que levou nossas cidades ao caos. 

Algumas outras diretrizes e ações fundamentais são: o envolvimento de equipes técnicas interdisciplinares, competentes e experientes; criar novos processos e metodologias de participação cidadã permanente no processo decisório e de reconstrução; produzir diagnósticos que apontem as características reais dos problemas, áreas atingidas, populações envolvidas e depois propostas e soluções adaptadas à realidade local, considerando diretrizes nacionais e regionais. 

Talvez a maior e melhor experiência em relação à ocupação de territórios de forma sustentável, sustentada, segura, equilibrada e respeitosa seja a dos povos indígenas, que vivem há mais de 10.000 anos neste continente, temos muito a aprender com eles, é preciso criar canais legítimos e efetivos de diálogo, trocas e cooperação, fazendo com que nossas cidades incorporem na produção do espaço, desenho, dinâmica e paisagem urbana, as soluções ambientais e culturais das várias etnias indígenas brasileiras.

Não se trata de ação isolada e de um projeto de duração definida, precisa começar do jeito certo, com as pessoas e recursos certos, objetivos e diretrizes certos, mas a partir de agora será permanente, perene. Uma transição destas para um novo modelo sistêmico e sustentável de cidades resilientes para as pessoas é algo complexo e sensível, desafiador, mas precisa e pode ser feito. Da mesma forma precisamos aprender a não ficar correndo sempre atrás do próprio rabo, claro que a prioridade são as cidades gaúchas, mas ao longo do processo e conhecimento acumulado, seremos capazes, de implantar esse modelo e plano nas demais cidades brasileiras e áreas de risco, agir antes do desastre acontecer, o que é muito mais simples, barato, rápido e menos traumático, sem perdas humanas e materiais. Talvez essa seja a maior oportunidade brasileira para fazermos a coisa certa, para transitarmos para um novo modelo de cidade, de planejamento urbano, de governança, de política e democracia urbana.

Aqui um link sobre o maior problema das cidades brasileiras em minha opinião e que impacta diretamente na possibilidade de cidades criativas ou não:

Desigualdades socioespaciais e o acesso a oportunidades nas cidades brasileiras.

Christian Krambeck, Arquiteto e Urbanista, empresário e professor de arquitetura e urbanismo FURB

1 Comentário

  1. é um debate urgente e necessário, todos temos que fazer um enorme esforço para pensar, agir e construir algo novo, mas qual novo? Quais diretrizes, objetivos, interesses, metas, indicadores, impactos?

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