Opinião: quando o progressismo se confunde com patrulhamento e com o fascismo

Imagem: reprodução

Recentemente, no famigerado e consagrado programa de entrevistas da TV Cultura, Roda Viva, o entrevistado, o cantor Martinho da Vila, passou por um questionamento mais áspero por parte da jornalista Vera Magalhães. A repercussão foi majoritariamente negativa, entretanto, o que chamou atenção foram os comentários nas redes sociais que apontam para um fundamento preconceituoso de cunho racial para justificar a desconfiança da entrevistadora em relação à resposta do sambista sobre o envolvimento eventual da milícia com as escolas de samba do RJ.

Esse tipo de acontecimento até não muito incomum em programas de entrevistas recentes, causa curiosidade, particularmente, pela insistência por parte de quem desaprovou o comportamento da jornalista, em associar um questionamento firme com um aspecto muito difundido nos meios das militâncias das chamadas “pautas identitárias”. Cabe lembrar aqui que o chamado “identitarismo” já não é uma novidade no âmbito das discussões jurídicas e políticas do cotidiano brasileiro.

Chama-se de “identitarismo” aquelas posições doutrinárias que enaltecem identidades. Se isso advém do conservadorismo, normalmente as identidades apontadas são alimentadas pelo nacionalismo e pelas religiões, em especial as religiões de maiorias. Quando o tema tem origem no progressimo, as identidades apontadas são as de minorias recortadas não só positivamente, mas de maneira mais presente pela tentativas de reconhecimento e defesa.

Nesse caso, “mulheres”, “negros”, “LGBTs” ganham destaque. “Indígenas” também são lembrados. “Portadores de necessidades especiais” (ou outro nome mais atual), pessoas que estão no limite de serem incluídas em campos de patologias ou que já são postas neste âmbito (autistas, depressivos etc.) ou pessoas que podem estar se colocando no interior de grupos por razões estéticas (“gordos”, “feios”, “tatuados”, “gagos” etc.), todos esses, podem também estar girando ao redor da doutrina identitária.

Nos Estados Unidos os grupos identitários são bem mais amplos e há mais tipos. Há até mesmo grupos curiosos: os “pretenders” (os que fazem de conta) são pessoas que não são mutiladas, mas andam com apetrechos de mutilados e agem como tal, simplesmente por gosto. Há grupos de lésbicas surdas, que reivindicam o direito de educar filhas (elas querem só ter filhas e não filhos) surdas como surdas, jamais procurando qualquer ajuda médica, mesmo quando reconhecidamente há maneiras de fazer as crianças escutarem. Segundo elas, o mundo deve ser povoado só por mulheres e a surdez não poderia ser vista como patologia ou anormalidade, nesse caso. Seria um grupo com identidade positiva, pois possuem uma língua etc. 

Podemos pensar também em grupos de minorias por meio de causas: a causa da descriminalização das drogas, a causa dos vegetarianos e veganos, a causa dos defensores de animais etc.

Que tais grupos minoritários possuam o direito de pensar na elaboração de novos direitos, é algo compreensível na perspectiva ocidental no campo acadêmico e no campo dos debates jurídicos. Essa prática nasceu dos ativismos dos grupos. Mas, tanto pelo conservadorismo quanto pelo progressismo, já faz algum tempo, as necessidades e reivindicações de minorias têm ido em uma direção, e o cultivo da identidade e do empoderamento individual tem ido para outra. Nesse segundo caso, abriu-se espaço para o que chamamos de identitarismo.

Requalifiquemos então o termo identitarismo. Um indivíduo identitário adota como elemento central de reconhecimento uma determinada característica física ou comportamental, e passa a tomar esse dado como o que lhe permite ou requisita empoderamento, e tenta ajustar a sociedade aos seus desígnios, tomados como prioritários e, não raro, acima de todas as outras coisas. Nesse caso, o que sustenta uma tal posição é a doutrina neoliberal que fomenta a diversidade (e não a singularidade), e que ao lado disso dispõe a individualidade moderna como algo natural e absoluto. A identidade é fonte de reconhecimento, ponto de partida e de chegada de todas as razões. 

Temos aí uma clara tentativa de substanciar algo ficcional. O narcisismo típico do neoliberalismo, fruto da ideia de que cada um explora só a si  mesmo, sendo o “empresário de si mesmo”, emerge aí com grande força. “Os outros existem, ao lado do meu grupo, mas o Outro, o que me nega efetivamente, não tem nenhuma legitimidade e eu nem o escuto” – este é o norte comportamental do identitarismo. Nesse caso, desaparece a luta entre burgueses e proletários, capital versus trabalho, e emergem a efusão das práticas histéricas de tribos que nem mais coletivamente gritam, mas só gritam nos tribunais, individualmente. A sociedade da guerra de todos contra todos (no âmbito jurídico), em uma sociedade de muitas faculdades de Direito, isso se torna conveniente.

A prática identitária se torna assim exatamente a requisição de uma sociedade neoliberal em que aquilo que se realiza é o contrário do temor de Sartre. O inferno não são os outros, mas o eu. O indivíduo engessado em uma única identidade adquirida por necessidade neoliberal de empoderamento, não consegue subsídios para uma vida individual satisfatória, e sucumbe diante do sufocamento trazido pela repetição, marasmo, atividade frenética porém tediosa de sua conduta monotemática. O indivíduo identitário é um cansado da vida, no sentido de Nietzsche, mas de uma maneira peculiar: ele está esgotado do convívio consigo mesmo uma vez que seu eu se empobreceu junto à solidão em grupo. O indivíduo identitário convive consigo mesmo no seio da solidão de um grupo. A dialética com o outro (o diferente), que lhe daria vida e riqueza de perspectivas, não existe. Caso não seja, ele, o identitário, exige que assim seja, e pede que os obstáculos deixem de existir por decreto. Oscila entre o vitimismo e o triunfalismo empoderado. Não conversa, apenas reitera palavras de ordem para exercer a seu triunfo, que os críticos brasileiros denominaram de “lacração”.

Nesse exercício de lacração, o indivíduo identitário subverte a esperança do filósofo francês (e progressista) Jean-Paul Sartre. No existencialismo, corrente filosófica da qual Sartre é baluarte, havia uma atenção especial à esperança. O pensador francês escreveu: é importante fazer alguma coisa com o que fizeram de nós. Sim! Era uma forma de advogar a autoconstrução, a tarefa de individualizar-se existencialmente e construir um eu livre e responsável, ou livre e por isso responsável. Mas o identitarismo toma “o fazer alguma coisa com o que fizeram de nós” de um modo muito particular: essa “alguma coisa” é transformada em uma única coisa: a fusão entre o ego e meia dúzia de palavras de ordem que empoderam o eu na medida em que o outro é calado, deposto, eliminado. “Machista e sexista”, diz a feminista identitária raivosa, diante de qualquer coisa, principalmente do que pode e deve ser muita outra coisa. “Gordofóbico”, diz o indivíduo obeso identitário diante de um médico que lhe mostra que ele está com problemas de saúde em função do excesso de peso. “Racista”, diz de forma automática e sem reflexão, o negro identitário para qualquer posição que elege a mágoa e não o direito como uma alavanca para a libertação. “É o racismo estrutural”, diz o acadêmico (negro ou não) que banaliza a palavra, usando-a para não analisar nada, apenas para seu regozijo de quem pensa ser intelectual. A prática fascista (no sentido banal e popular do termo) do “cancelamento” surge aí com força total. Nessa hora, e só nessa hora, o indivíduo neoliberal age em grupo. É o momento do flerte de uma pauta de origem progressista com o elemento que ela se propõe a combater de forma mais tenaz: a conduta intolerante do fascismo.

Paralelamente, o identitarismo aprisiona minorias. Ao se mostrar monotemático, se coloca espontaneamente no gueto das minorias. Para cada coisa que anseia falar, é lembrado pela sociedade que ele mesmo, como identitário, se disse dono de um “lugar de fala”. Então, permaneça naquele lugar de fala. Arquiteto negro deve falar de assuntos de negros e não de arquitetura. Antropólogo negro deve falar do negro na cidade, e não da cidade. E assim por diante. Cada um se limitando a sua função social no seio do sistema, como enaltecido pelo sociólogo clássico francês, Émile Durkheim, assim como pelo neoliberalismo. O identitário armou sua própria armadilha e não se dá conta disso.

As minorias têm tudo para exercer o direito de repensar direitos. Mas caso se permitirem fazer isso, única e exclusivamente com base no identitarismo, talvez anulem toda a criatividade que há no seu interior e não criem nenhum direito, apenas fomentem a abertura de mais faculdades de direito e o surgimento de políticos equivocadamente associados à esquerda. A sociedade do processo e do triunfo fantasioso da militância política que não entendeu que para afirmar a diversidade é preciso a dialética com o outro, apenas garante a manutenção de identitários profissionais (literalmente) com interesses escusos, além do alto número de processos judiciais desnecessários.

A identidade precisa afirmar-se no seio da diversidade, o progressismo não pode flertar com o fascismo e a política de esquerda é qualquer coisa que não seja “identitária”.

2 Comentário

  1. Resumo da ópera: o mundo caminha (a passos largos) para o precipício

  2. Logo no início o texto até chega esboçar o esforço de preservar o bebê ao se livrar da água do banho. Mas só para, logo em seguida, atirar o bebê fora das mais variadas maneiras (as mais usuais: “empoderamento” e “o indivíduo identitário”). Perda de tempo. Há modos mais atualizados que esse para se abortar um argumento

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