Há músicas que não passam por nós, atravessam feito tempestade, deixando suas marcas, perenizando no corpo e na memória cada significado que a letra, o ritmo, (de olhos fechados) desenham. Aquele som chega lentamente, envolve e nos entrega como num humilde barco carregado de significado, embarcado de verdades e sonhos. Não naufragam, apenas desaparecem ali, no horizonte, para ressurgir em outro canto, balançando senhoras e senhores do seu próprio destino. Vão rasgando por inteiro os pensamentos, as certezas… e costurando na volta, ponto a ponto, justo quando o mundo insiste em se desfiar, em dar nós cegos onde deveria haver laços.
Parece piegas (até acho que pode ser mesmo), mas algumas destas músicas que são ouvidas por ai não foram produzidas para serem reproduzidas. São poesia pura, coisa para sustentar dores e enfrentar os obstáculos que surgem inevitavelmente no caminho. Sabe quando você chega em casa, ao fim de um dia torto? Então, a emoção que a música entrega é como se, logo nas primeiras notas, o compositor puxasse uma cadeira, servisse um cafezinho e, apressado, começasse a dizer: “senta aí, amigo, eu sei o que você está enfrentando”. Acho que é uma daquelas coisas que mais aproximam artistas do sentimento de pais biológicos que nunca mais encontraram seus filhos e, ainda assim, sabem exatamente o ponto que dói em suas crianças naquele instante (à distância), tocando-as em pensamentos.
E foi justamente em um desses fins de tarde, de cicatrizes frescas, que chegou ao meu cais o álbum “Dominguinho”, premiado nesta última semana com um Grammy. Posso dizer que ancorou e ficou como se o meu barquinho estivesse escorado em “Pontes Indestrutíveis”, essa releitura de João Gomes, Mestrinho e Jota Pê. Porque tem algo no ar que insiste em nos empurrar para a loucura coletiva. Um lugar onde o ódio virou discurso aceitável, a exclusão ganha voz no palanque e que acordamos todos os dias com alguém destilando veneno contra um outro alguém. E no meio disso tudo, chega essa música e sussurra, encoraja: rompa a sombra da própria loucura e cuide de quem te quer bem.
Nestes tempos, os versos de uma música servem como conselho ou, ainda, um método de sobrevivência com notas de filosofia de resistência. Deve ser por isso que dizem por ai que artistas podem até morrer, mas mesmo após partirem seguem vencendo e ensinando.
“Resgate suas forças e se sinta bem. Rompendo a sombra da própria loucura. Cuide de quem corre do seu lado e quem te quer bem. Essa é a coisa mais pura”. Não moraliza, nem corrige, ou promete cura. Apenas lembra que, antes de enfrentar o mundo, é preciso sobreviver a si mesmo, e que nossas batalhas já são suficientes para chegar (pedaços ou por inteiro) no destino que imaginamos como final.
Porque a verdade é que há muita gente bebendo sangue nas ruas. Prevendo lucro, benefícios, “estar certo”, vestindo sua capa mais cruel. Gente que transforma religião em porrete, pregando intolerância aos que não obedecem ao fundamentalismo de suas convicções; existem aqueles que enjaulam a política em um mundo monocromático; outros que exercitam a moral pela manhã e suruba no café da tarde.
E, no entanto, a beleza insiste, com a voz de quem, segundo esses mesmos arautos do ódio, não deveria sequer existir. Quando a guarda baixa, o Brasil inteiro ouve quem embala nossos domingos, nossas dores, nossos amores… são esses que ganham os maiores prêmios, tocam nas rádios e fazem multidões cantarem junto. Exatamente eles, os negros, as mulheres, os nordestinos, as pessoas trans, os de origem periférica. Aqueles que ocupam não uma, mas várias dessas identidades que a sociedade tenta encaixotar, como se a vida coubesse em definições e se a existência humana aceitasse geometrias simples.
Liniker, uma mulher trans, preta também venceu em uma das categorias do Grammy. “Veludo Marrom” tem quase 8 minutos de duração. Isso mesmo, um tempo não convencional em uma época que a disputa por atenção é medida em frações de segundo e tudo precisa ser rápido, digerível, instantâneo… descartável! E ela chega, ocupa 8 minutos de nossos ouvidos. A gente para, escuta e se emociona. Na contramão de tudo que este país tenta reduzir ao silêncio ela venceu. E chegou lá sendo quem é, sem pedir permissão, caber no molde ou na fobia de ninguém. João Gomes, Mestrinho, Jota Pê e Liniker são esses que muitos no país tentam empurrar para o rodapé, mas que insistem em ocupar o palco inteiro. Deve ser um problema na fiação da intolerância: toda vez que eles apertam o interruptor, acende mais luz. (risos)
Eu escrevo aqui, no Informe Blumenau, praticamente toda semana. E em algumas delas as reações vêm violentas, em que tentam calar não com argumentos, mas com barulho, com ofensa, com censura velada e ameaças de baixo nível. Não pedem licença para não pisar em feridas. Você fala de direitos, humanidade, dignidade… e, de repente, parece que abriu um portal do inverno para convocar toda a ira guardada no subsolo da civilização. Então eu escuto essas músicas, lembro desses brasileiros que insistem em ter alma apesar do esforço contrário e sigo.
Faço questão de repetir: é como aconselha a música do álbum, “cuide de quem corre do seu lado e quem te quer bem”. Um recado simples, profundo e raro. Não é sobre quem corre na frente, ostentando vitórias, ou sobre quem fica atrás, cobrando lealdade submissa. É sobre quem sofre também e compartilha a estrada, enfrenta de mãos dadas as tempestades, os tropeços e recomeços. Quem te quer bem e não quem concorda com tudo cegamente, permanecendo vigilante.
E enquanto alguns insistem em furar cascos de barcos alheios, em afundar travessias, transformando o mar em campo de guerra, a música segue construindo suas pontes indestrutíveis. Estruturas feitas de versos que ligam gerações, de vozes que recusam o silêncio, e de existências que teimam em ancorar nos cais mais improváveis.
A música faz isso. Ela constrói travessias onde tentam erguer muros. Por mais que tentem (e tentam, pode acreditar), não conseguem silenciar quem tem 8 minutos de poesia para cantar, quem leva o sertão para o Grammy, quem transforma a própria existência em ato de resistência involuntária. Porque essa, meu amigo, é a coisa mais pura. E contra ela, não há interruptor que funcione. A gente vai resgatando forças, rompendo a sombra da própria loucura e cuidando de quem corre ao nosso lado. Boa semana!
Tarciso Souza, jornalista e empresário





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