Opinião: quando a crise engole a ética

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Na época da Grécia Antiga, época de ouro da filosofia e com desdobramentos para a nossa civilização como um todo, vivia-se tendo-se em vista o coletivo. É conhecida a menção ao homem como “animal político”, o homem em constante busca pela vida em sociedade, pelo bem comum. O homem se reconhecia no mundo enquanto cidadão, enquanto parte da república. Mesmo quem não tivesse voz na democracia grega, via em sua vida e em seu trabalho um modo de contribuir com o coletivo e mesmo de liberar dos afazeres rotineiros do dia a dia aquele que tinha voz na democracia, para que ele pudesse estar a pensar e discutir as coisas públicas. A grandiosidade da república era a sua grandiosidade. A realização da república era a sua realização. A ética se colocava em referência à política.

Em dado momento, Alexandre, O Grande, marchou sobre as repúblicas gregas e, em especial, potencializado pela sua morte, com as disputas pelo domínio do império de Alexandre, houve o fim do modo de organização política que tanto orgulhou os primeiros filósofos. Os reis enviaram, então, uma figura pouco conhecida naquele contexto, o administrador público, que executaria localmente as decisões que seriam tomadas a portas fechadas pelo rei. O cidadão agora era apenas um súdito. Não se reconhecia mais enquanto homem-cidadão. Agora era apenas homem-indivíduo. As antigas virtudes não eram mais valorizadas. E toda aquela comunidade que por gerações se preparava, preparava a sua vida para o debate, da noite para o dia viu o seu modo de vida não fazer mais sentido, pois as decisões chegavam prontas. Não havia mais o debate público.

Uma vez que, agora, se pensava o indivíduo para além do coletivo, a ética que estava submetida à política também perdeu sua referência e pôde ensaiar rumos autônomos em relação à política. Tal ocasião propiciou um intenso debate por muitos anos, pelos quais as pessoas se perguntavam o que então se deveria fazer? Como se deveria viver? E as respostas geraram várias escolas filosóficas que refletiam sobre a possibilidade de passar a vida em busca do prazer, ou sobre o desprezo pelo prazer, refletiram sobre a satisfação apenas das necessidades animais, sobre passar a vida tentando não se perturbar por nada, em livrar-se de todas as posses, enfim, respostas das mais variadas.

De qualquer modo, para além da especificidade de cada uma das respostas ou escolas filosóficas que colocaram em debate o que fazer, o que eu gostaria de destacar aqui é justamente o momento de ausência de referencial ético, a crise de valores propiciado não pela ética em si, e sim pelo contexto. Quando as coisas estavam em ordem, se sabia o que fazer e se fazia. Com a crise política as certezas caíram por terra.

Outro exemplo possível nesse sentido, apesar de guardar especificidades em várias perspectivas, é a crise ética após as duas grandes guerras. A aposta na razão que vinha desde o iluminismo mostrou do que a razão foi capaz na prática, de criar máquinas de morte eficientes, de potencializar matanças sem sentido e o sofrimento inútil.

Após as duas guerras mundiais do século passado, vários filósofos colocaram em debate de modo primordial a própria existência, se há uma grande razão que guia o mundo, se há um plano mestre no mundo, ou se somos lançados a arrastar o nosso corpo pela terra sem nenhum sentido para além do sentido que nós mesmos individualmente dermos para as nossas vidas. Mais uma vez vem a pergunta pelo que fazer, o que me resta fazer, o que sou livre para fazer e em que medida ainda posso ou não culpar outros pelas minhas próprias escolhas.

Pode-se partir da consideração de que atualmente vivemos um momento de ressaca dessa crise sanitária pela qual não conseguimos nos desviar com facilidade e vemos em muitos, dia a dia, sinais do sofrimento gerado inicialmente por um vírus, mas também pelas consequências como a fome, o desemprego, a inflação, mortes, a depressão, a ansiedade e vários outros concomitantes dos quais cada um é que melhor sabe o que mais lhe afeta.

Com o imprevisto, com a ausência de sentido generalizada, as escolhas tendem a ficarem relativizadas, tem-se uma relativização dos valores, uma relativização também dos modos a partir dos quais se tomar as decisões, uma relativização da ética e do sentido da ética em meio a um contexto com alto grau de adversidades. Mas, talvez, seja justamente o momento no qual a ética se projete como ainda mais necessária.

Por exemplo, se eu sou um cientista, um médico ou proprietário de uma rede de hospitais e planos de saúde, sei que cloroquina não funciona para Covid, é ético eu promover o seu uso para Covid? Ou, se tenho poder de decisão em se tratando de políticas econômicas, vamos supor, a título de exercício, que fosse um ministro da economia ou um presidente do Banco Central e, assim, tivesse informações privilegiadas, é ético eu ter investimentos em uma conta estrangeira que ganham lucro toda vez que há uma desvalorização na moeda do meu país? Ou, ainda, se potencializado por minhas decisões econômicas, um país empobrece dia a dia e passa fome, é ético que o meu dinheiro não esteja submetido às minhas políticas econômicas e esteja a salvo em contas estrangeiras em dólar? Vamos pra outro exemplo. Se eu tenho funcionários pagos com dinheiro público, como vereadores, deputados e outros que podem ter assessores, é ético eu exigir que parte do salário desses funcionários me seja dado sob pena de demissão? E, por último, se eu sei que uma informação que me chegou no WhatsApp é falsa, que vai prejudicar as pessoas, podendo inclusive colocar a vida delas em risco, é ético eu promover a sua disseminação e encaminhar tal mensagem?

Para além da possibilidade de incorrer em crimes, o que me interessa hoje salientar é a adaptação do discurso (ou narrativas) para passar um verniz ético em ações por vezes não tão éticas. Se percebe com alguma frequência a tentativa de se passar a impressão de que exemplos como esses, fictícios, é claro, se fossem reais poderiam todos ser defendidos como éticos tendo-se em vista uma tentativa de redução da ética a mera questão de opinião, pra não dizer o discurso de “e o fulano lá?”, como se uma ação antiética tornasse ética outra ação antiética.

Em tentativas diárias, nos discursos, de remodelar o que é ético de acordo com a conveniência que me deixam em alguma medida com a impressão de que já estamos vivendo uma crise ética, ou, então, que vivemos com a possibilidade de que, mais uma vez, uma crise na sociedade pode estar a nos encaminhar na direção de engolirmos a ética.

Se a crise ética e a relativização de valores se aprofundar, teremos pensadores para reconstruir as reflexões após os escombros, como outrora tivemos? Em um país marcado pela tentativa reiterada de sepultar as reflexões em prol da sacralidade do treinamento técnico, ou, ainda, em um descaso com a educação como um todo e em um preconceito rotineiro em relação às humanidades em especial? O que restará aos nossos filhos será apenas o adestramento em códigos de conduta e os escombros do que um dia foi a ética?

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