Trânsito sem a política não existe e dificilmente serão desassociados; nossa vida diária é definida na política. Mesmo que muitas vezes queiramos dizer que não gostamos de política, esse é um fardo inseparável: não existe a possibilidade de termos nossa vida sem a influência política.
Há um tempo, numa conversa com um ex-vereador de Blumenau, questionado por que a câmara aprova leis que aparentemente ferem o artigo constitucional de que é privativo da União legislar sobre trânsito. A resposta foi simples: é no município que se iniciam as mudanças a nível nacional. Às vezes, mesmo que a lei possa posteriormente ser julgada inconstitucional, é importante que os representantes municipais mostrem o desejo dos munícipes. Assim foi com a legislação do cinto de segurança: antes de ser uma regra nacional, muitos municípios, de forma pontual, já haviam aprovado leis sobre o tema.
A palavra “política”, por si só, tem origem no vocábulo grego politéia. Esta era utilizada para se expor todos os assuntos associados à polis (cidade-estado) e à vida em comunidade. De forma geral, é a arte de negociar para compatibilizar pensamentos.
Nesse sentido, nada mais normal que decisões que possam interferir diretamente na vida das pessoas passem por decisões políticas. Mas essas decisões devem ter limites? Ou toda e qualquer decisão no trânsito deve provir da vontade da maioria?
Exemplos históricos no Brasil de mudanças no comportamento do trânsito que priorizam a segurança em detrimento da vontade política, se enumeram aos montes. Há tempos atrás andar de moto sem capacete; não usar o cinto de segurança; transportar crianças sem equipamentos de retenção, eram cenas comuns, hoje em dia pode parecer loucura. Será que, na época, essas mudanças técnicas, se dependessem de aclamação popular, teriam acontecido?
Afinal as mudanças no trânsito devem priorizar a base científica ou a vontade popular?
É muito comum políticos, já em suas campanhas, prometerem mudanças no trânsito ou na mobilidade. São promessas de melhorias com obras faraônicas, mudanças nas regras, promessas de facilidades às vezes sem critério, apenas no intuito de demagogicamente se manifestar num assunto tão popular, afetando diretamente a vida de todos e por fim angariarem mais votos.
Mas, considerando que no trânsito e com o trânsito, não se brinca, é evidente que, quando se alterem quaisquer regras, essas mudanças deveriam ter como base análise, estudo, dados que possam trazer certezas de um trânsito melhor e, principalmente, mais seguro. Assim como mudanças podem trazer pontos positivos na vida das pessoas, principalmente na eficiência, erros podem causar sinistros (acidentes) e, fatalmente, pessoas feridas ou mortas. O trânsito não tem espaço para achismos.
A vontade do povo é soberana?
Muitas das regras ou mudanças no trânsito surgem do clamor popular e, às vezes, passam longe das mesas dos técnicos e especialistas, que acabam sem participar dessas decisões ou, se participam, o fazem simplesmente para chancelar alguma decisão já imposta.
Bolsonaro, em sua campanha, prometeu que mudaria as regras da renovação da CNH. Afirmou que acabaria com a “indústria da multa”, alterando as regras dos radares. Já em São Paulo, Haddad, quando prefeito, prometeu diminuir a velocidade nas marginais, para, depois, Doria aumentá-la novamente. Sem adentrar no mérito de quem esteja certo, são decisões que devem ter base análises técnicas e científicas. Não podemos imaginar que essas decisões partam apenas do escopo político. Ou devem?
Se vai aumentar o tempo para renovação da CNH, que se explique por que 10 anos e não 15 ou 20. Se diz que vai acabar com a “indústria da multa”, que se puna rigorosamente quem está por trás desses interesses financeiros, e não da segurança. Se vai diminuir a velocidade, que se comprove o motivo, o mesmo vale se for para aumentar.
Mas mudar por mudar nunca será o caminho certo.
No fim de tudo podemos acabar com situações inusitadas e arriscadas, tais como cidades onde a câmara de vereadores incrivelmente aprovam legislações proibindo o uso de capacete por motociclistas com a alegação de diminuir a chance de assaltos. Alteram limites de velocidades máximas, mudam sentido de vias, proíbem estacionamentos, entre outras bizarrices, sem motivações técnicas ou justificativas plausíveis. Isso já nos leva a outro tema importante: até onde alterações nas regras de trânsito devem ir para melhorar a segurança pública?
Mas… isso na minha cidade não existe?
Esse é um mal que atinge muitas decisões, e decisões temerosas. Quem nunca achou certo ser permitido avançar o sinal vermelho ou desligar o semáforo para não correr o risco de ser assaltado? Ou seja: é a insegurança gerando insegurança. O poder público não garante sua segurança de ser assaltado e permite que você arrisque a sua vida no trânsito,
Em Blumenau, até os dias atuais, os corredores de ônibus entram na pauta das discussões. Talvez, se fosse pela vontade popular, nem teriam sido instalados. Volta e meia, existem forças contrárias, com opiniões alertando sobre a melhoria das vias e, na opinião de muitos motoristas de automóveis, os corredores exclusivos deveriam ser abolidos ou compartilhados. E as 85 mil viagens de pessoas em Blumenau que estão no ônibus? Que se virem, ou que participem do trânsito de carro?
Sobre decisões politizadas, reza a lenda que um Diretor de Trânsito, na primeira década do século XXI, recebeu o pedido de colocar um agente de trânsito na saída de um colégio no centro de Blumenau, mais dentro do colégio do que fora. Ao citar, na reunião, que achava a ideia ruim, o mesmo recebeu, logo após, uma ligação do secretário municipal, com o simples aviso de que, o pedido virou ordem, se ele não achasse a ideia boa, poderia entregar o cargo e, a partir de segunda-feira, ele mesmo, já que era agente de trânsito poderia fazer a travessia das crianças. No mesmo momento, o diretor respondeu que estava “só brincando” — e, na segunda-feira, lá estava um agente de trânsito no local, e ele continuaria diretor.
A política e o trânsito são assuntos tão comuns no dia a dia, tão sociais e tão importantes na vida das pessoas, que umbilicalmente estarão sempre ligados. Não existe a possibilidade de desassociar um do outro. Ambos são fundamentais, precisam conversar e ter equilíbrio no debate entre si.
Obviamente, nenhuma escolha no trânsito deveria ser tomada sem a certeza da sua efetividade. A decisão deve ser com dados, estatísticas, números e base científica que possam dar assertividade às mudanças ou na pior das hipóteses se copiar exemplos que deram certo mundo afora. Agora, inventar, fazer por fazer, popularizar uma decisão em áreas de constante risco ou por votos é um risco demasiado à vida das pessoas.
Com trânsito, não se brinca.
Lucio R. Beckhauser, Agente de Trânsito, Especialista em Direito de Trânsito






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