“Vista seu melhor traje no dia da sua execução (barbeie-se com esmero) e tente deixar uma boa impressão junto ao pelotão de fuzilamento”. Que desgraça… parece que a morte virou um tema fixo na rotina de todos nós, brasileiros. É assassinato de inocentes, policiais, mocinhos, bandidos e vítimas desta rotina de moer gente. Sem falar nas boas ideias que mudariam o mundo mas, pela estupidez irracional de muitos, são enterradas sob muitos palmos de terra.
Bem que a velha da foice poderia apresentar o fim de uma série de dores que enfrentamos, da segurança pública aos desastres ambientais. Arrastando com ela, também, a forma mais brega e burra de morte que existe: a de amores por políticos de estimação. Estes sim, os únicos com o poder de seguir as recomendações de Nassim Taleb, escolhendo para suas biografias que história será contada depois que eles, enfim, partirem.
Mas hoje não falo exatamente de mortes consumadas, embora elas rondem cada linha deste texto. A minha referência é sobre algo mais patético: a morte ficta e o que se desdobra depois. Um espetáculo grotesco que militares produzem para preservar o soldo de criminosos que desonraram a farda que vestiam. Em resumo, é aquela que os fatos decretam antes que o corpo caia, é o que vem depois, ou melhor, antes do depois.
Aposto que você já viu, ou ao menos ouviu histórias, de alguma família se digladiando pela herança antes mesmo do velório terminar, não é? Talvez, pior que isso, soube que a briga começou quando ainda restavam suspiros de vida no defunto. Os herdeiros? Ah, esses não têm paciência alguma. Já estão com as unhas de fora, se rasgando pelo espólio enquanto o moribundo ainda respira.
É exatamente isso que testemunhamos com o bolsonarismo. A morte ficta de Jair Bolsonaro não precisou nem mesmo ser decretada para que suas criaturas se estapeiem em praça pública. O homem segue vivo, tecnicamente falando (e soluçando), mas politicamente agoniza, dia após dia, esvaindo-se de qualquer pingo de força para subir, em algum momento, em um palanque novamente. O tempo agora, um “tic-tac” cruel, vai avançando na velocidade da luz, 72 horas por segundo, despertando o quadrado sol de uma vaga em Papuda que se aproxima.
Convenhamos, deve ser uma bosta estar na posição em que o ex-presidente se encontra. O fuzilamento político já está encomendado e, ao mesmo tempo, aqueles a quem ele mais devota confiança e carinho carregam, neste instante, muito mais preocupações com o que ele deixou do que, necessariamente, com o futuro morto (neste caso, preso).
Antes mesmo do inelegível líder da extrema-direita receber o uniforme de futuro presidiário, a briga já está feroz dentro do círculo íntimo. Quem será o escolhido para estar na urna no lugar de Bolsonaro? E mais: em Santa Catarina, o PL vive uma novela mexicana sem o glamour. Enfim, cada facção jura ser a verdadeira portadora do legado bolsonarista, como se houvesse nobreza nessa herança.
Esta briga no escuro, com tiros para todos os lados, não produz um projeto de país, de Estado. Isso exigiria muito destes seguidores. Lutam pelo direito de perpetuar o ódio, de manter acesa a tocha da intolerância, de continuar a política do gatilho fácil. É fascinante e perturbador assistir a tudo isso.
Enquanto o morto ensaia seus últimos fôlegos políticos, o testamento já foi definido pela extrema-direita, demarcando coisas e identificando os donos. É o caso de uma vaga no Senado por Santa Catarina. Lá vem, do Rio de Janeiro, o Carlos Bolsonaro cobrar a fatura por seu pai ter ajudado a eleger o pequeno governador catarinense. O filho quer herdar a aura paterna (e os votos). Mas, como você deve saber, sempre aparece um parente que fica ofendido e acha que estão passando a perna nele. Dentro do PL, dividido entre os que fingem decência e os que a abandonaram há tempos, também é assim, e todos entram na disputa por cada punhado de votos do capital político do semipreso. Isso faz lembrar um banquete de hienas antes do velório, com o cadáver ainda tropeçando nas próprias pernas.
É muito estranho que o sobrenome, neste caso, carregue uma força como de uma marca, capaz de atrair tanta atenção sem produzir absolutamente nada que não seja gritos e delírios. Fico curioso, e até espantado, que um tanto de gente deposite esperança em alguém cuja única credencial é ser parte de um clã que se tornou sinônimo de tentativa de golpe, de crueldade institucionalizada, de ataque à democracia e falência moral.
Mas existe algo pior, e mais feio, que a disputa por esta herança Bolsonaro. O sangue derramado nas favelas, como no Rio de Janeiro, ressuscitou o apetite da extrema-direita. Hoje, brotam aqueles que se alimentam politicamente de cada morte, de todas as mães que choram seu filho executado, das operações que viram chacinas. Os mais sanguinolentos e reacionários encontram seu elixir da juventude política no líquido que salta das veias e é derramado nas periferias. Agora disputam ferozmente quem terá o direito de continuar esse projeto de morte.
É obsceno que para alguns a política foi reduzida ao seu ponto mais baixo e repugnante, que é a gestão da violência como plataforma eleitoral, o extermínio como promessa de campanha, a bala como resposta a toda complexidade social. E isso passa por um modelo perverso aplicado também na ponta, nas cidades. Como é o caso de Florianópolis, onde o prefeito Topázio quer mandar embora da capital quem chega de ônibus na rodoviária. Parece até que a pobreza é uma doença contagiosa e que aqueles que chegam ao Estado, por algum motivo, fossem lixo a ser removido para que a paisagem fique mais limpa.
Uns querem herdar o poder de remover os pobres com balas, outros com passagem de volta para o endereço de onde emigraram. Métodos diferentes de um mesmo projeto que carrega o objetivo de classificar o pobre como invasor, não como cidadão. Um higienismo do século 21. É tratar seres humanos como problema urbanístico, não como pessoas com histórias, sonhos, dignidade que ninguém pode tirar.
Dizem no popular que cada escolha é um ato de criação. Nós mesmos criamos e projetamos uma imagem do que a humanidade deveria ser. E por isso, questiono tanto: que raios de projeto é este em disputa nesta herança do bolsonarismo? Poder?
Parece que os herdeiros já escolheram. Querem um país onde sobrenomes importam mais que qualquer outra coisa. Mas, sabe quer saber? Que briguem. Que se rasguem à vontade pela herança maldita. Que disputem cada farrapo dessa bandeira suja de sangue e mentiras. Quanto mais se dilaceram, mais expõem a natureza parasitária desse desejo vazio de poder. Porque, no fim, o que estamos testemunhando não é a perpetuação do bolsonarismo, mas sua autofagia.
Que essa briga entre os herdeiros seja o canto do cisne da irracionalidade que tomou conta deste país. Que seja o último suspiro de um projeto político baseado no ódio, na exclusão, na violência como método.
Hannah Arendt dizia que “o totalitarismo começa quando destruímos a capacidade humana de agir, de iniciar algo novo”. Que eles briguem à vontade pelo espólio do ódio e se destruam mutuamente nessa disputa mesquinha. Enquanto isso, nós estamos ocupados demais construindo o futuro, sem precisar aceitar o que os herdeiros decidirem, e iniciar uma outra história, tendo a empatia como método político, a inclusão como projeto de sociedade, a criatividade como forma de resistência e a vida como valor inegociável.
Tarciso Souza, jornalista e empresário





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