
Dom Angélico faleceu na semana que antecedeu a Páscoa, justo quando as vitrines começavam a se encher de coelhos e as propagandas nos lembravam de comprar mais chocolate. Enquanto isso, as famílias “de bem” enchiam sacolas com chocolates industrializados. Uma coincidência devastadoramente poética. E, com ele, mais uma fagulha daquele cristianismo incômodo — o que caminha ao lado dos fracos, dos pobres — também se foi. Consegue sentir o gosto amargo por trás de tanto açúcar?
O religioso, em vez de colecionar indulgências, somava gestos: agregava, ajudava, amava gente. Sabe aquelas pessoas que doam seus dias para preencher álbuns com o bem, as boas práticas? Pois é: ele era assim! Um alguém que, por insistir em defender os mais necessitados, virou alvo de quem bate no peito com crucifixo de ouro e Bíblia completamente rabiscada com marca‑texto neon.
Conheci Dom Angélico quando fui crismado por ele. Eu vi de perto aquele olhar — calmo, mas firme, como quem sabe que rezar de olhos fechados não adianta se o coração está trancado a sete chaves para encarar um desconhecido e afeiçoar‑se por um irmão.
Escrever estas confidências parece, para mim, até um pouco irônico. Hoje sou o que dizem por aí de “desigrejado”, sabe? Se tivesse a obrigação de encontrar uma religião para chamar de minha, por razões óbvias, seria esta em que o corpo gira, os pés tocam o chão de terra, o cheiro de fumaça toma conta do ambiente, ponto riscado, sob o ritmo de tambores. Meu afastamento das igrejas encontra, talvez, alguma justificativa em quem viu de perto como as instituições religiosas vão se esvaziando de significado enquanto se enchem de espetáculo.
A morte de Dom Angélico nessa data específica me faz pensar sobre fé e religiões. Sobre como somos capazes de transformar qualquer coisa — até a morte e ressurreição de um deus — em pretexto para consumo; uma fé seletiva que deseja ressuscitar direto: sem cruz, sem espinho, sem carregar o outro nas costas.
A fé virou um negócio. E, como todo bom empreendimento, tem plano mensal, marketing digital, evento com coffee break e fila para a bênção. Em algumas dessas igrejas, até área VIP foi construída para receber aqueles que, quando encontram gente — o pobre, a empregada, o sem‑teto — torcem o pescoço para fingir cegueira. Quer o milagre? Passe na maquininha primeiro. Quer salvação? Assine o plano ouro e garanta sua vaga no céu com cashback.
Existem tantos que aceitam que Jesus pode multiplicar magicamente os pães, mas surtam se alguém defende a partilha, a distribuição de renda, a destinação de propriedades improdutivas para aqueles que sabem que precisam apenas de um pedacinho de terra para transformar a sociedade.
Dom Angélico incomodava. E pessoas que incomodam raramente são celebradas em vida. Tinha amizade com Lula, simpatizava com o PT, defendia trabalhadores sem‑terra. Um verdadeiro “comunista de batina”, diziam os mesmos que agora encherão suas bocas de chocolate caro para celebrar um Cristo no qual, convenhamos, não acreditam de verdade.
Ninguém gosta de olhar para manchas na própria face, de encarar falhas e cicatrizes. Penso que o incômodo provocado pelo religioso que coordenou a Diocese de Blumenau existia porque ele era como um espelho. Seu “pecado” foi ter levado a sério demais aquela história de “amar ao próximo”. Enquanto a Igreja se preocupava em condenar comportamentos individuais, ele se ocupava em denunciar pecados estruturais. Enquanto muitos rezavam por almas, ele lutava por corpos concretos, famintos, excluídos.
Se Cristo ressuscitasse hoje e entrasse nesses templos climatizados, nesses cultos televisionados, nessas missas perfumadas, tenho certeza de que empunharia novamente o chicote. E seria novamente crucificado — não pelos romanos dessa vez, mas pelos próprios cristãos. Pelos mesmos que compartilham mensagens de “Feliz Páscoa” em redes sociais enquanto ignoram completamente seu significado.
A verdade é que ninguém quer olhar pro lado. É mais confortável desejar “salvação para o mundo” do que oferecer um copo d’água ao vizinho. Dizer “Jesus te ama” virou desculpa para não amar ninguém. Amar é trabalhoso, exige tempo, escuta, paciência — tudo que não cabe num post de 280 caracteres.
Dom Angélico não agradava porque lembrava o óbvio: não dá para amar a Deus e odiar gente. Ele encarnava aquele evangelho indigesto — o que não cabe em cultos com iluminação cenográfica e pastores de voz grave.
É fascinante como o cristianismo se transformou. Um homem que não tinha onde recostar a cabeça se tornou o símbolo de um dos maiores impérios econômicos da história. “Não se pode servir a Deus e ao dinheiro”, dizia ele. Os sacerdotes contemporâneos encontraram um jeito: servem ao dinheiro em nome de Deus. Problema resolvido.
Não vejo mais sentido em igrejas. Vejo sentido em gente como ele. Gente que entende que espiritualidade sem justiça é apenas perfumaria existencial. Gente que compreende que qualquer deus que valha a pena está mais preocupado com a fome do outro do que com as preces dos bem‑alimentados.
Meu altar, se ele existisse, seria as encruzilhadas da vida, os espaços de fronteira, os territórios de dúvida. Mas tenho certeza de que, se há algum lugar onde o espírito de Cristo ainda respira, com dificuldade e em aparelhos, é nos poucos que, como Dom Angélico, ainda ousam incomodar.
Eu sei, a Páscoa passou. Que a data e a memória do bispo que levou o evangelho a sério possam refletir em você também, permitindo parar um pouco e pensar no circo comercial que a fé foi transformada. Parece que hoje, mais que nunca, o Cristo e a ressurreição celebrada não são mais aqueles que subvertem a ordem injusta, mas a nossa própria capacidade de acomodar qualquer mensagem revolucionária em embalagens coloridas e inofensivas.
Dom Angélico, dos humilhados e humildes, viveu, vive e viverá sempre ao lado das pessoas certas. Lutando, guiando e iluminando o caminho certo da história.
Tarciso Souza, jornalista e empresário
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