Opinião | Modernidade: da utopia capitalista à distopia do coronavírus

Imagem: reprodução

Em nosso texto anterior abordamos as utopias e distopias da modernidade, dentre as quais a consolidação de um mercado supostamente livre, de direitos humanos universais e outros pressupostos que culminaram na situação em que nos encontramos, isto é, no capitalismo neoliberal (clique aqui para conferir). O argumento de fundo daquela reflexão (texto) chamava atenção para o fato de que a aposta na razão (iluminismo) feita pela modernidade conduziu o Ocidente a crenças de que por meio da racionalidade científica atingiríamos o progresso, a liberdade individual e a igualdade social. Nas mais variadas frentes do pensamento e do fazer humano se estabeleceram utopias. 

Inebriadas pelas promessas da modernidade, o Ocidente desconsiderou o oposto das utopias: as distopias. Ou dito de outra forma, desconsideraram-se os efeitos colaterais e indesejáveis contidos nas utopias, entre eles: a concentração estatal e privada da riqueza socialmente produzida; a produção e o consumo excessivo de recursos naturais; as incômodas montanhas de lixo; os “refugos humanos” incapazes de participar da plena produção e do pleno consumo. Os resultados das utopias do século XIX atravessaram o século XX na forma de distopias conflitivas nas duas grandes guerras mundiais, na aceleração da destruição ambiental, na financeirização do mundo e da vida, no esvaziamento do debate público (político) em torno dos bens comuns em relação a potencialização do crédito privado, entre inúmeras outras variáveis.

Sob tais pressupostos, os postulados sobre os quais a modernidade foi edificada parecem estar produzindo o estertor, a ruidosa respiração dos moribundos. Talvez se possa considerar que a modernidade em suas pretensões utópicas esteja em seus derradeiros respiros. Mas, o novo ainda não foi constituído. É sinal da mudança na concepção que temos de “crise”, atualmente separada do fim dos tempos para postergar o período de incerteza e justificar a instauração de um estado de emergência em razão do qual são tomadas medidas de exceção. O que antes parecia sólido para muitos – apesar de alguns saberem muito bem que a solidez proporcionada pelas certezas não passava de alucinação produzida discursivamente – se apresenta em toda a fragilidade. 

Vivemos o equivalente à descoberta das fraquezas daquilo que nos parecia onipotente: os pés de barro de uma estátua de bronze; os danos proporcionais à altura de um cargo (quanto maior o cargo, maior o tombo); etc. Dito de outro modo, vivemos um período parecido com aquele anunciado por Karl Marx e Friedrich Engels. De todo modo, isso não significa que apostemos na pós-modernidade, inclusive porque o prefixo “pós” indica uma passagem necessária pela modernidade, portanto, a continuidade de alguns postulados, sobretudo da perspectiva racionalista. Ou dito de outra forma, o prefixo “pós” sugere que se tenha esgotado os pressupostos do projeto moderno e, que estaríamos adentrando num novo estágio civilizatório demonstrando de forma inequívoca o quanto estamos presos a lógica civilizatória moderna na medida da constante projeção de utopias.

Neste texto continuaremos as reflexões a partir daquilo que nos atingiu e parece ser apenas um pesadelo: a pandemia do coronavírus. As artes anteciparam o surgimento de milhares de modos de destruição das ilusões modernas, cada obra apontou alguma fragilidade ou algum desdobramento dessa fragilidade. Em função da sempiterna precarização das condições e dos direitos sociais era evidente que os sistemas públicos de saúde (que atendem os trabalhadores, os despossuídos, os refugos humanos) não suportariam uma pandemia com duração de médio prazo. Ficou cada vez mais evidente que a econometria, cujos imperativos regem nossas vidas, produz desigualdades, fome e converte humanos em números para reduzir a complexidade das decisões (não decidimos quantos morrerão, apenas acompanhamos e analisamos as estatísticas de mortalidade – esse raciocínio eufemístico permite o alívio da consciência dos decisores; ou facilita a distribuição de medidas perversas).

No Brasil, diante da gravidade da pandemia, as medidas do governo federal são tímidas, senão intencionalmente ineptas. O BNDES comunicou que injetará 55 bilhões de reais na economia brasileira: 20 bilhões transferidos do PIS/PASEP para o FGTS e o remanescente para financiamentos e amortizações de dívidas de empresas. O governo federal anunciou garantia de recursos para a saúde e o emprego (quais?), reforço no Bolsa Família, tolerância de atraso por 3 meses no recolhimento do FGTS e do Simples nacional, redução dos tributos incidentes sobre produtos médicos, fechamento das fronteiras (mais de 10 milhões de reais destinados ao patrulhamento da fronteira com a Venezuela…), resgate da aviação comercial civil e abertura de crédito de 24 bilhões de reais para trabalhadores autônomos e de 48 bilhões de reais para empresas.

Para as políticas públicas de saúde para o enfrentamento do coronavírus especificamente, editou a Medida Provisória 924, em 13 de março de 2020, abrindo crédito de pouco menos de 5,1 bilhões de reais. Valor irrisório se comparado aos custos estimados de aproximadamente 1 bilhão de reais gastos anualmente para custear o auxílio moradia de juízes. Mais irrisório ainda se comparado aos 2 trilhões de dólares destinados pelos Estados Unidos da América.

Não bastasse isso, o governo federal insiste em repassar para os trabalhadores, sobretudo de baixa renda, a responsabilidade por arcar com as despesas necessárias para preservar a quarentena. Mais do que isto, faz terrorismo discursivo ao sugerir que a quarentena quebrará o país, produzirá a falência da economia nacional. Assim, pretende que os milhões de trabalhadores informais e, ainda, que os resistentes trabalhadores formais exponham seus corpos e suas vidas ao coronavírus voltando imediatamente ao trabalho. Demonstração inequívoca de que o capital somente sobrevive vampirizando o sangue, o corpo e a carne dos trabalhadores, das massas humanas informais, habitantes das favelas, dos cortiços, das periferias – grupo que cotidianamente é cortejado pelo espectro da morte. Assim, não será necessário que o Estado arque com as despesas da quarentena. Para o governo federal, por um lado, parece melhor que morram todos, pois assim é possível reduzir os custos com os direitos sociais necessários; por outro lado, garantir a drenagem de riqueza para especuladores e rentistas deprimidos com a queda das cotações nas bolsas de valores. Essa medida não destoa muito do que já vemos há muito no Brasil.

Mas há uma ambivalência da situação em que nos encontramos. Daqui podemos tanto sair para a morte, quanto para novas formas de organização social. Dentre as novas formas de organização social, podemos ter uma “destruição criadora” do capitalismo, estratégia segundo a qual o ressurgimento do novo pressupõe a destruição do velho. Segundo essa concepção, uma guerra, uma epidemia, uma pandemia, uma crise e outros fenômenos destrutivos se apresentam também na potencialidade de constituição de uma nova forma de organização. Não é difícil entender os motivos pelos quais as crises são tão importantes para a conservação do capitalismo, num movimento que destrói o que está ao redor, mas que conserva o núcleo sobre o qual o capitalismo gira.

E aqui nos deparamos com o paradoxo neoliberal que advoga pela liberdade de mercado e de especulação financeira na proporção inversa da diminuição do Estado na regulação da economia, sobretudo em sua ação social. Ou seja, na perspectiva neoliberal a função do Estado seria a de garantia jurídico-repressiva dos interesses do capital. A eficiência e eficácia de um Estado são mensuradas pelas famosas “agências privadas” de avaliação das economias nacionais que estabelecem uma pontuação que indica ao capital quais Estados são mais confiáveis aos seus interesses de expropriação e acumulação. Porém, em momentos de catástrofe natural, de pandemias, ou mesmo de aventuras inomináveis da ciranda financeira (crise de 2008), compete ao Estado intervir e salvar a lógica econômica capitalista em estado de acelerada decomposição. 

É uma espécie de movimento dialético que funciona na seguinte perspectiva: 1) Tese: os neoliberais Hayek, von Mises e Milton Friedman exigem a diminuição do estado social a agigantamento do estado agência reguladora dos interesses do capital; 2) Antítese: o modelo neoliberal gera distorções, super-produção, excesso de demanda e concentração de capital, baixa taxa de lucratividade geral. Produz-se a crise, a destruição criativa de Joseph Schumpeter; 3) Síntese: a crise profunda produz desemprego, distúrbios sociais, guerras. O Estado é chamado a recuperar a economia por meio da intervenção social. Keynes é desenterrado e chamado à vida para iniciar um novo ciclo de acumulação do capital, que inevitavelmente traz consigo o discurso da liberdade de mercado e da diminuição do papel do Estado na economia.

Por outro lado, podemos pensar na paralisação da máquina governamental (Giorgio Agamben), no encontro de linhas de fuga (Gilles Deleuze e Félix Guattari) ou em inúmeras outras perspectivas que nos permitam aproveitar a oportunidade nascente. Assim, a crise pandêmica do coronavírus pode ser interpretada também como uma oportunidade de interferir na dialética de reprodução do capital. Evidentemente não se trata aqui de propor sua derrocada final e a emergência de uma nova ordem que substitua à dinâmica do capital. Apresentar proposição nesta direção significa permanecer vinculado à lógica das utopias modernas e seus consequentes desdobramentos distópicos. Afinal, é preciso ter presente que o capitalismo é filho da modernidade. Ou seja, significa manter-se preso a lógica do capital como lógica utópica/distópica constitutiva da modernidade.

A interferência proposta aqui, inspirada nas perspectivas analíticas do filósofo e jurista Giorgio Agamben, implica na paralisação da máquina política, econômica e governamental em curso, como forma de exercitar, no tempo que resta, a potência do pensamento na constituição de formas-de-vida em que vida em sua totalidade e, nesta totalidade a vida humana possa ser pensada e vivida em sua singularidade desvinculada dos imperativos da precificação, do valor de troca das mercadorias, do imperativos totalitários da plena produção e do pleno consumo de si mesmo, das relações com os outros seres humanos, com a vida, com o mundo.

 

 

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