Ei, menino, deixa de ser abusado. Desvie já o olhar para o lado de lá. É dezembro, faz calor e, aqui neste Estado, bundas brancas suadas e peladas precisam passar. Não é libertinagem, veja bem. É privilégio mesmo. Sempre foi. Pra que mudar?
O sol reflete naquela pele exposta e, safadinho, resolve lamber a buzanfa rechonchuda que rapidamente fica vermelha por ocupar todo o caminho. A claridade não ilumina. Ofusca. Quem tenta atravessar uma simples espiadinha, acreditando em disputa justa, tropeça na própria ilusão. A bunda branca segue nua, caída, desavergonhada, orgulhosa de não enxergar nada além do próprio rabo. É verão. E, como a temperatura de Blumenau, sem vento, sem chuva, faz derreter essa fantasia morna chamada neutralidade racial.
Foi mais ou menos assim que a Assembleia Legislativa decidiu agir: pediu silêncio, exigiu olhos fechados, ordenou tapar o nariz, encheu o peito de ar podre e, ufanamente, desfilou raiva, ignorância e racismo. Resolveu despir qualquer máscara. Antes tivessem coberto o rosto para disfarçar algum pudor ao impor o fim das cotas raciais em Santa Catarina.
O discurso é elegante, quase civilizado. Pobreza é o problema, não a cor, é o que dizem ao microfone. Somos todos iguais perante a lei, repetem, com a tranquilidade de quem nunca precisou explicar por que estava ali. O detalhe inconveniente é que o racismo não pede comprovante de renda. Ele age antes da entrevista, ou da prova, de um simples “bom dia” negado.
Já escrevi em outras oportunidades, meu avô paterno foi uma criança escravizada na região de Lages, depois de declarada a Lei Áurea, o que costumavam chamar de guri de criação. Ninguém precisou me ensinar sobre obstáculos, ofensas e portas fechadas. Até hoje, queira ou não, sou lembrado da necessidade de provar quem eu sou, meus valores, meu endereço.
O PL 753/2025, que proíbe cotas raciais nas universidades estaduais, chega agora porque, vejam bem, mãos pretas calejadas estão chegando perto de demais de nádegas herdadas, e isso incomoda. Aposto que muitos “conservadores” ficam furiosos ao ver sua filha ou filho chegar em casa acompanhada (o) de um negão colega da faculdade. Ou, ainda, por provocarem um duríssimo movimento para as bundas brancas: levantar da cadeira, mexer o traseiro e dividir espaço com outros, digamos, que não se parecem com catarinenses.
“É que ele é preto demais. Corre demais, fala demais, sorri demais. Tá estudando demais e assim não dá mais”, diz a música de Fernanda De Oliveira Bastos e Hugo Albuquerque Araújo. Quase como uma constrangedora previsão amedrontadora que agora vira lei no Estado. Vai ver, quando um preto estuda demais, o privilégio branco estremece. E, como segue a letra, pretos e pretas estão “se unindo demais, planejando demais: assim eles vão passar o filho de um branquelo pra trás”.
Tem uma crueldade específica em assistir homens com tanto poder formal serem tão pequenos em humanidade. Um Doutor em Direito Público, um candidato a Desembargador, gente que dedicou anos ao estudo da Constituição (ao menos é o que se presume por títulos acadêmicos), votaram por rasgar essa mesma carta magna. Os dados comprovam que cotas raciais funcionam e ajudam a reparar falhas graves da formação da sociedade brasileira. Mas quem se importa, não é? Quando você está confortável no seu privilégio, cego pela luz refletida na própria pele, a decência e a missão pública passam a ser um detalhe.
Imagine dois jovens pobres. Mesma escola ruim, ônibus lotado e sonho universitário. Um é branco, outro negro. A diferença começa quando um entra correndo na sala e o outro precisa justificar a pressa e a presença. A cota social combate a fome, e isso é necessário. Mas não retira o chicote da mão.
Racismo não é subproduto da pobreza. Pessoas negras, mesmo com escolaridade semelhante, ganham menos, ascendem menos profissionalmente e caem mais rápido do topo da pirâmide. Talvez você saiba o motivo, mas, curiosamente o mérito, que muitos tratam como uma entidade quase mística, costuma se confundir quando precisa alcançar a pele preta.
Eu insisto: substituir cotas raciais por “apenas sociais” é fingir que pobreza e racismo são a mesma coisa. E não são! O jovem negro de classe média também carrega o peso da desconfiança, das portas que se fecham, do olhar que julga com o filtro que só aceita um tom de pele.
Parece que os Deputados catarinenses encaram os séculos de escravidão no Brasil como se fosse questão de perspectiva. Até parece que o racismo não está gravado nos números de encarceramentos, mortalidade materna, violência policial, baixa representatividade. Também, fazem esforço para dizer que as 60 células neonazistas ativas por aqui são apenas um detalhe estatístico. O primeiro professor negro que tive na minha formação regular foi no ensino médio e, para minha surpresa, formou-se no Rio de Janeiro.
Santa Catarina adora se imaginar europeia, ordeira, trabalhadora. Esquece de contar quem limpou o chão – e a bunda – de tantos senhorzinhos de sobrenome pomposo, cheio de consoantes. Negros sempre foram tolerados no esforço e rejeitados na ascensão. Logo, presumo, ao aprovarem esta lei, os parlamentares apontam que o problema nunca foi o preto (a) estudar. É estudar demais que incomoda.
Há quem diga não enxergar racismo. É compreensível. Quem sempre esteve sentado tem dificuldade de ver o chão. Basta olhar para as diretorias, os conselhos, os cargos onde se decide de verdade. Quantos pretos e pretas mandam, assinam, escolhem o rumo? O silêncio responde antes da pergunta terminar!
Políticas raciais incomodam tanto porque deslocam o centro da sala. Elas obrigam quem sempre foi o exemplo a disputar como qualquer outro mortal. E isso dá trabalho absurdo. Além de suor, calo e faz descobrir, com certo espanto, que vencer na vida pode exigir o mesmo esforço que sempre foi cobrado dos outros.
Fechem os olhos, dizem. As bundas brancas estão nuas demais para encarar o próprio espelho… e suadas de medo para disputar a vida em igualdade.
Tarciso Souza, jornalista e empresário






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