Opinião | Da Oikonomia à Economia

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Na Grécia Antiga a palavra assume a seguinte grafia: “oikonomia”. Decompondo a palavra temos a seguinte conformação gráfica e semântica: “oikos = casa”; “nomia = leis, normas”. Assim, se compreende que a oikonomia dizia respeito ao conjunto de atividades humanas que se realizavam no âmbito da casa com a finalidade de cuidado e manutenção da vida dos membros da comunidade doméstica. Mais especificamente a palavra oikonomia expressava o conjunto de regras, de normas que regulavam as relações de produção e distribuição dos bens e produtos necessários à preservação da vida do núcleo familiar. Portanto, a oikonomia constituía-se de um conjunto de relações e atividades que eram realizadas no lar, no espaço privado e, com a finalidade de manutenção da vida biológica dos habitantes da “oikos”, da casa, criando os bens necessários à satisfação das necessidades.

Mesmo considerando que a oikonomia era atividade desenvolvida no espaço privado da oikos sem deixar de notar que no espaço público a centralidade da atenção dos cidadãos estava voltada à ação, à política – sua finalidade implicava na preservação da vida do núcleo familiar (família e escravos), o que significa considerar que a oikonomia implicava num conjunto de relações cuja finalidade era coletiva. Dizia respeito ao bem estar material e vital de um coletivo, o núcleo familiar. Dizia respeito, em última instância, ao cuidado com a vida em sua dimensão biológica (zoè). Assim, a oikonomia apresentava-se como um meio, um conjunto de atividades práticas coordenadas com vistas a um determinado fim, a preservação da vida.

Evidentemente que as atividades oikonomicas transcendiam as relações domésticas. Os excedentes produzidos no âmbito do oikos eram comercializados na praça do mercado. A vida humana em coletividade, em comunidade também se justifica pelas contrapartidas e dependências que humanos estabelecem entre si como condição da sobrevivência. Ou dito de outra forma, por não sermos autossuficientes em nossa própria condição humana, bem como em nossas habilidades físicas e manuais é que vivemos em agrupamentos e sociedades. Assim, entre os gregos, bens e produtos eram negociados entre si e, por extensão com outros povos.

Nesta direção, o próprio Aristóteles propôs a distinção entre a economia e a crematística. Enquanto a primeira possuiria como fim a satisfação das necessidades dos membros da pólis, por meio de suas dinâmicas familiares, a segunda teria origem quando as trocas comerciais passavam a visar o acúmulo. Isto é, quando o excedente produzido por uma família, por exemplo, era negociado não a fim de se conseguir algo necessário à própria família, mas a fim de acumular o lucro. Esta diferença de finalidade permite que se compreenda como a economia deixa de ser atividade voltada à manutenção da vida e se torna atividade voltada à acumulação monetária.

Os tempos modernos, por sua vez, acentuam a condição da crematística. A “oikonomia” que outrora dizia respeito ao conjunto de relações que se estabelecia entre os membros da oikos como meio para a manutenção da vida, da casa, cuja finalidade era a manutenção da vida, passa, por meio do saber adquirido que é a crematística, a ocupar o centro da praça pública, a utilizar a vida de indivíduos e populações como meio, como recurso, como capital humano e social, cuja finalidade última é produção e acúmulo do capital.  É preciso ter presente que toda a riqueza produzida é sempre fruto do trabalho humano, que incide sobre a natureza, sobre as matérias primas, sobre a criatividade e, produz bens materiais e imateriais. Por decorrência, é a força de trabalho expropriada do resultado de sua ação que permite a concentração da riqueza, do capital.

Assim, dos argumentos acima apresentados desdobra-se por exercício lógico, prático e com consequências sociais e humanas, que capital concentrado significa força de trabalho lançada na mera sobrevivência dependente de sua expropriação cotidiana.  A pobreza de extensas parcelas das sociedades mundiais periféricas é o “produto final” de um modelo social e econômico pautado na violência da expropriação indébita do trabalho humano, do trabalho socialmente executado, tornado meio a serviço de um modelo econômico transformado em fim em si mesmo.

A economia política cujas origens encontramos nos fisiocratas franceses, iluministas escoceses, e, sua afirmação remonta ao filósofo da moral escocês, Adam Smith, apresenta-se pretensiosamente como ciência com a capacidade de estabelecer leis a partir da interpretação de fenômenos naturais e comportamentos humanos, visando otimizar os recursos naturais e humanos, a produção e o consumo, a disposição dos homens de indústria, dos investidores, dos fundos de capitais dispostos a manter e multiplicar seus recursos.  É também por isso que a economia política em sua pretensão científica se constituiu como utopia. Um mundo interpretado e conduzido à luz das leis invariáveis da economia política necessariamente constituiria uma sociedade de mercado apta a governar-se a si mesma no contexto de uma economia de mercado.

Entre as projeções utópicas da economia política, seja em seus pressupostos liberais ou marxistas, na concretude da vida e das sociedades humanas, o que se estabeleceu como práticas econômicas nas sociedades contemporâneas foi o aprofundamento da economia como um fim em si mesmo. Ou dito de outra forma, a economia transformou-se numa transcendência que regula a vida dos meros mortais lançados em sua mera condição de produtores e consumidores endividados.  Extraterritorializada em sua condição especulativa e financeirizada não se compromete com a garantia dos bens básicos à sobrevivência e não permite que indivíduos e populações questionem seus vínculos, suas responsabilidades com a materialidade, senão precariedade de suas vidas em sua cotidianidade.

Nesta condição extraterritorializada a economia também sequestra o Estado e suas instituições, submetendo-os a sua lógica operacional e concentracionária.  Sua condição de transcendência assume tal potência, que lhe permite operar a partir de uma linguagem própria, incompreensível para bilhões de seres humanos e sociedades que têm suas vidas e suas mortes decididas diuturnamente pelos cálculos de custo e benefício estabelecido por esta dinâmica transcendente de economia como fim em si mesma.

A transcendência da economia na contemporaneidade se apresenta como um regime de governo totalitário, que captura a vida de indivíduos e populações numa lógica administrativa sem possibilidade de questionamento ou mesmo de compreensão de seus mecanismos de funcionamento.  Seus especialistas (os economistas tecnocratas) diuturnamente argumentam convincentemente que este modelo – em que o mercado,  anônimo, sem rosto, onipresente e onisciente, dita as regras do jogo – é o único “modelo econômico” possível, que cumprirá suas promessas de desenvolvimento e de bem estar para povos e países. Se isto ainda não se realizou é por culpa destes mesmos povos e países, de sua incompetência, de sua ausência de empreendedorismo, dos excessos de feriados que fere a produtividade e a competitividade da economia, do excesso de direitos trabalhistas (lembremos aqui dos asseclas mais recentes que ocuparam a presidência do país, o capitão e seu adivinho, oráculo – na figura de ministro da fazenda – que vociferavam: “Mais direitos, menos emprego. Mais empregos, menos direitos. É preciso fazer a escolha”).

Diante desta condição transcendente que a economia assumiu em nosso meio o questionamento dos juros praticados pelo Banco Central desencadeia advertências. O “mercado” ficou “irritado com tais declarações”; ou “O mercado ficou instável”; ou “O mercado olha com desconfiança a política econômica do governo”; “o mercado…” Todas estas expressões e muitas outras que poderiam ser apresentadas denotam categorias metafísicas para expressar a vontade totalitária de uma entidade transcendente (o mercado) que opera a Economia como “absoluta” em si mesma; que não admite a estrutura humana que necessariamente o constitui e, portanto, pode o modificar.

Isto é, não se trata aqui de afirmar que o mercado é uma instituição sem fundamentos materiais, um objeto imaginário. É necessário reconhecer que o mercado é composto por todos os indivíduos, em suas mais diversas formas de movimentação econômica: das dívidas geradas em nome da sobrevivência a investimentos multimilionários em fundos de investimento. Enquanto parte da dinâmica do mercado, nossas decisões cotidianas conformam, perpetuam e legitimam tendências. O problema reside, portanto, em desconsiderar esta dimensão; fazer com que os ânimos mercadológicos sejam regulados por reduzidos grupos com significativa participação nas transações financeiras nacionais e globais.

Significa dizer que enquanto inegavelmente membros do mercado, jogamos de acordo com regras que não criamos, embora as legitimemos. Seguimos ouvindo diuturnamente análises que dão conta do mercado como entidade distante da economia comum. E distante porque é apenas ocupando um lugar longe do interesse comum que podem ser justificadas medidas austeras para com os cidadãos, trabalhadores, responsáveis pelas movimentações econômicas que marcam a dimensão da economia privada. Longe do cidadão, o mercado encontra seu lugar numa esfera teleológica, cujo fim é dado por si mesmo, isto é, não precisa ser outro que não a própria vontade da transcendência que se escolhe como figura: o mercado, a economia, etc.

A dicotomia indivíduo-mercado, ou ainda, sociedade civil-mercado também serve à lógica neoliberal de individualização das questões sociais. Se admitida, a famosa frase proferida por Margaret Thatcher “não há sociedade, só indivíduos”, reforça a noção de que a economia é fenômeno imutável e independente das dinâmicas da vida individual (sempre vivida em sociedade). Se não se considera parte de uma ordem econômica – mutável – que é tanto influenciada pela dinâmica cotidiana quanto a influencia, então facilmente se acredita em contos tais como o da meritocracia e tanto pobreza quanto riqueza se tornam resultados unicamente das ações individuais. Se compreendido, entretanto, que um sem número de fatores socioeconômicos previamente dados pela configuração social em que se vive influencia diretamente as dinâmicas da vida privada, então pobreza e riqueza deixam de ser unicamente questão de esforço e se tornam, também, partes da dinâmica econômica de que somos, inevitavelmente, parte. Isso não retira da esfera individual a responsabilidade por escolhas pessoais, mas chama atenção para o fato de que a transcendência da economia também contribui para a individualização de resultados que, embora específicos na esfera privada, são coletivos e dependentes de relações socioeconômicas.

A economia como condição absoluta e transcendente opera cotidianamente exigindo que seus asseclas, seus “especialistas”, conduzam o “culto” exortando indivíduos e populações para a compreensão inquestionável das suas verdades: todos os males advém da condição corrupta da política que, incidindo negativamente sobre as verdades da economia, por decorrência exige o sacrifício dos salários, da vida, do mundo em sua condição humana rastejante. Enfim, a economia de mercado como fim em si mesma necessariamente transforma o humano em meio, em nome do próprio humano. Justifica-se assim, o uso do humano que em sua condiçãoprecária de produtor e consumidor endividado não tem condições de administrar sequer sua vida e, sobretudo sua morte. Segue-se disso uma dinâmica econômica e mercadológica cujos fins, embora justificados logicamente nos cálculos econométricos, se apresentam destituídos do bem comum como finalidade. Na ausência do coletivo como fim, não espanta que a economia seja objeto distante do espaço comum, reservada à mera técnica e excluída da dimensão humana que necessariamente a compõe.

Nosso tempo é um tempo de urgências. Não é por acaso que entre as urgências que se apresentam desafiadoras a sobrevivência dos indivíduos, povos e países sejam duas dimensões vitais cujas grafias e semântica remetam ao mesmo radical linguístico do grego antigo: oikos (casa) nomia (leis, normas , regras) = economia; oikos (casa) logos (conhecimento, sabedoria) = ecologia. Estas duas dimensões são determinantes nas relações que os seres humanos estabelecem entre si, com as outras formas de vida. Relações a partir das quais se constitui o  mundo, fruto da ação e do compartilhamento da vida.  Sob tais pressupostos trata-se de paralisarmos a máquina econométrica do capital tornada um fim em si mesma e, devolver a economia ao seu uso comum, ao debate público em função dos interesses, das necessidades e urgências públicas, do espaço público compartilhado pelos seres humanos como fins em si mesmos, única condição possível de conferir legitimidade a um modo que preserva e promove a vida em sua cotidianidade.  Qualquer proposta econômica que não se apresente como meio em função da promoção e preservação do mundo é expressão da barbárie, da violência, da desigualdade, da pobreza material e espiritual de seres humanos transformados em meros meios, a esvair suas precárias vidas na lógica do crédito e do débito, na lógica da plena produção e, da destruição do mundo pelo consumo.

Sugestão de música.

Sandro Luiz Bazzanella, Professor de Filosofia e Sandra Eloisa Pisa Bazzanella, Estudante de Filosofia – UFSC.


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