Opinião | Bebê reborn é desequilíbrio emocional? E rezar para pneu?

Imagem gerada com IA

Em toda a história, em cada capítulo da evolução humana, nunca as transformações sociais ocorreram de maneira tão intensa e em velocidade máxima como nos dias atuais. Se a internet trouxe uma nova dinâmica para o relacionamento entre diferentes gerações, os smartphones reinventaram o trabalho, o lazer e tantas outras áreas. Mas foram as redes sociais e mensageiros instantâneos que quebraram qualquer paradigma de organização e comunidade. Agora, as ferramentas generativas – como são as inteligências artificiais – caminham para, em poucos anos, promoverem revoluções mais profundas que a vivida no século XVIII com a Revolução Industrial.

As mudanças que as tecnologias proporcionam, porém, acrescentam complexidade ao mundo. Alguns dos desafios retiram a racionalidade que a realidade exige, empurram uma imensidão de pessoas para a desilusão, o vício e tudo que recompensas e estímulos de dopamina proporcionam. Nunca sentimos tamanha conexão com estranhos – mesmo os mais distantes de nosso endereço. Nunca vivemos a solidão de maneira tão profunda.

Este é o novo planeta em que vivemos. De alicerces firmados em uma nuvem wi-fi, construindo em bits, cliques e algoritmos a ética, o pensamento, as crenças e tudo mais. A internet é isso: o grande catalisador de comportamentos extremos. Antes, pessoas com obsessões, mentiras ou crenças muito específicas ficavam restritas ao seu círculo social limitado. Agora, é fácil para qualquer um encontrar sua comunidade online. Tem grupo no “zap” para quem reza para pneu, comunidade no Facebook para as mães de bebê reborn e tantas outras subdivisões das maneiras de encarar o mundão. A máquina de recomendações das redes não faz distinção entre o fervoroso religioso-político e a compensação emocional das bonecas para adultos – ela só entrega mais do mesmo para quem demonstra interesse.

Esses espaços formam uma espécie de câmaras de eco, onde comportamentos questionáveis se normalizam através da repetição e do reforço mútuo. A mulher que gasta o salário inteiro em um bebê de silicone, ou acessórios para o brinquedo, encontra centenas de outras fazendo a mesma coisa e pensa: “ah, então é normal”. O fanático religioso-político que tropeça nas milhares de mensagens que reforçam uma pós-verdade fácil de engolir e assimilar, alimentando à sua realidade distópica.

Hoje a discussão que faz explodir o feed das redes é o bebê reborn. Não faz muito tempo eram as imagens de pessoas ajoelhadas na beira de rodovias, rezando para pneus velhos, pedindo para “São Borracha” intervir na democracia brasileira. Existem diferenças entre quem adota bebê de silicone e quem reza para pneu pedindo golpe militar?

Ambos revelam o mesmo fenômeno: adultos criando realidades paralelas para lidar com frustrações que não conseguem processar de forma madura. O mais perturbador é como os grupos desenvolvem narrativas elaboradas para justificar o injustificável. A diferença é que um comportamento é tratado como “questão de saúde mental” e gera debates sobre terapia e acompanhamento psicológico. O outro é tratado como “manifestação política” e a discussão segue sobre democracia e extremismo.

A internet amplifica tudo isso porque transforma qualquer obsessão em nicho de mercado. O sofrimento vira conteúdo, o delírio vira engajamento, a insensatez atua como alimento para “curtidas” e algoritmos. Enquanto isso, os adultos da sala – família, amigos, conhecidos – ficam naquele dilema moderno: intervir e ser acusado de intolerância, ou ficar quieto e assistir alguém que você ama mergulhar cada vez mais fundo no próprio desequilíbrio emocional?

No fim, tanto o bebê reborn quanto o pneu sagrado servem ao mesmo propósito: evitar o doloroso trabalho de olhar para dentro e admitir que algumas feridas só saram quando paramos de fingir que elas não existem. A tecnologia deu voz para todos. Pena que esquecemos de usar também os ouvidos – especialmente para escutar quando alguém está gritando por ajuda através de comportamentos que, por mais bizarros que pareçam, são sempre sintomas de alguma dor maior.

Não tenho formação em psicologia para prescrever tratamentos ou diagnosticar transtornos. Minha área é o jornalismo. Mas carrego comigo uma certeza incômoda: uma sociedade que normaliza adultos conversando com objetos inanimados – sejam eles bebês de silicone ou pneus de caminhão – enquanto ignora o grito de socorro por trás desses comportamentos, é como se vivêssemos em uma coletividade que perdeu a capacidade de cuidar de si mesma.

Certamente o problema não está no bebê reborn, nem no pneu sagrado. A questão é que construímos um mundo tão hostil à vulnerabilidade humana que se tornou difícil para
qualquer um arriscar e criar vínculos genuínos com outros seres humanos. Por isso tantos preferem objetos. Parece mais fácil comprar um bebê de silicone por cinco mil reais do que encontrar alguém disposto a ouvir sem julgar.

Esta é a dinâmica de sobrevivência que permitimos na atualidade: compartilhamos vídeos desses comportamentos como entretenimento, rimos da dor alheia disfarçada de excentricidade. A verdade é que ainda não encontramos maneiras de deixar de ser cúmplices de uma sociedade que produz solidão em escala industrial e vende a cura em forma de curtidas, comentários e compartilhamentos.

Tarciso Souza, jornalista e empresário

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