Opinião | A era dos gestores tiktokers: a saga da impessoalidade (ou a falta dela) no poder executivo

Imagem gerada com IA

Sem água não há vida. Nada fluiria, tudo seria um imenso deserto poeirento, feio, sem graça. Sem comunicação, da mesma forma, que sentido teríamos para caminhar por verdes campos, sonhar com um horizonte lindo, ensolarado, beira-mar? Imagine, um cidadão no leito de hospital, totalmente dopado de remédio, sem nenhuma fagulha de atividade cerebral para anunciar sua presença, o que seria? O fim! Sem a criação de um método convencionado de diálogo, a evolução da fala, da escrita, dos meios divulgação, das ideias e das trocas de conhecimento, certamente, também não existiríamos.

O fato é que precisamos tanto da comunicação para viabilizar a vida como necessitamos da água para manter o organismo funcionando. A aplicação incorreta ou em doses exageradas destes elementos vitais, causam desfuncionalidades e podem custar o fim de tudo. Exemplos não faltam, e muitos nasceram em Blumenau. Os primeiros dramas humanitários causados pelas chuvas, com enormes enchentes, ganharam a cidade como cenário. Também, foi por aqui que surgiram as primeiras ondas de rádio do país, o brilho da TV, páginas de jornais e uma vastidão de experimentos que registraram a história da nossa gente.

Um tanto de água pode assumir três diferentes apresentações que aprendemos quando bem jovens, nos livros escolares: o sólido (gelo), o líquido (água que bebemos) e o gasoso (vapor de água). Já a comunicação evolui em meios mais complexos, apresentados em: escrita; falados ou sonoros; visuais; audiovisuais; multimídia e hipermídia. É por conta desta diversidade, e ainda por, como espécie, ter a necessidade quase que fisiológica de comunicar, que inovamos desde os primórdios a forma de transmitir a nossa mensagem.

Como tudo no mundo ganha pernas na sociedade, na vida real, acelerando as transformações, para, só então, começar a movimentar a engrenagem lenta dos órgãos públicos, com a comunicação não é diferente. O Brasil está entre os mais adaptados as novidades deste tempo que a grande rede une, afasta, cria brigas e acalma corações – de internet. Mas, nas repartições públicas, nas leis e regras vigentes no país, as coisas seguem como uma carroça com tração animal: ultrapassada, lenta e resistente as mudanças.

No período de faculdade, recordo, havia um querido professor de ética no jornalismo que repetia que a pena do jornalista é como um bisturi de um cirurgião. A cura e a morte estão juntas, na mesma ponta, espreitando o descuido do artista profissional. Acho que era uma releitura da frase do pitoresco político Enéas Carneiro que dizia: “a caneta de um mau jornalista pode fazer tanto mal quanto o bisturi de um mau médico!”

Este assunto trouxe uma curiosa semelhança – do tempo e do tema. Em São Paulo, a Justiça autorizou ação contra o ex-prefeito João Doria, por fatos do período em que esteve na prefeitura, por uso indevido das redes sociais para promoção própria. Em Blumenau, em decisão liminar, o Judiciário entendeu que não cabia seguir adiante, ao menos em primeira análise. Duas situações distintas, mas que se conectam pela mesma raiz: a confusão entre comunicação pública e marketing pessoal.

E aqui cabe a pergunta incômoda: se um servidor da prefeitura – comissionado ou de carreira -fosse cortar a grama da casa do prefeito, não chamaríamos isso de improbidade? Então por que achamos normal quando esse mesmo servidor passa a manhã gravando TikTok, editando reels e escolhendo trilha sonora para o Instagram particular do chefe?

A democracia se sustenta sobre igualdade política. Mas como competir com prefeitos, governadores, diretores, secretários, ministros tiktokers que transformam a máquina pública em produtora de conteúdo? Enquanto uns têm designers, câmeras e roteiristas pagos pelo erário, outros candidatos contam apenas com o sobrinho que aprendeu a usar o Canva. Claramente, neste ponto, já vivemos um conflito de igualdade de armas para competidores dentro das regras democráticas.  Atualmente, não contamos com clareza nas regras, o que torna difícil a vida de todo mundo que trabalha dentro e fora da administração pública.

Embora o texto da nossa Constituição Federal traga uma orientação para disciplinar a comunicação pública, faltam outras leis para regulamentar e tornar mais honesta esta relação do poder estatal com o político eleito – ou não – como gestor. O artigo 37, parágrafo 1º da Carta Magna diz que: publicidade oficial deve ser informativa, educativa ou de orientação social – jamais promoção pessoal. É cristalino no papel, mas, na prática, é fumaça de ring light. Não é o suficiente para a profundidade da comunicação social, especialmente após os meios digitais ganharem volume.

Veja o caso controverso de São Paulo e Blumenau. Talvez seja exagero chamá-los de gêmeos, mas que parecem primos próximos, ninguém duvida. Foi Rosane Magaly Martins, advogada e ex-candidata a prefeita, quem teve a coragem de questionar o óbvio em ação popular protocolada em maio de 2025: pode o prefeito Egídio Ferrari usar a estrutura municipal para alimentar suas redes sociais particulares, transformando servidores públicos em produtores de conteúdo pessoal? Faço a citação do chefe do executivo municipal por formalidade de existir um fato – um processo – contra ele. Porém, o questionamento cabe para todo e qualquer político vestindo um cargo de gestor.

Entre os esclarecimentos solicitados na petição estão os números. Estes, mesmo que eventualmente torturados, não costumam mentir. Enquanto o Instagram oficial da Prefeitura de Blumenau minguava de 153 mil para míseros 157 mil seguidores em cinco meses (crescimento de 2,6%), o perfil pessoal do “Delegado Egídio” explodia de 100 mil para 169 mil no mesmo período. Um crescimento correspondente a quase 70%. Uma porcentagem que faria qualquer startupeiro de marketing correr para vender um curso online. Das 109 postagens que ele fez no Instagram, apenas 21 eram genuinamente pessoais, conforme analise incluída no processo. O resto? Pura promoção institucional disfarçada de vida privada.

No TikTok, a metamorfose foi ainda mais gritante. Antes da eleição, cada publicação do delegado-prefeito coletava entre 500 e 800 curtidas. Depois que descobriu que podia usar o cargo para turbinar o algoritmo: entre 15.000 e 60.000 curtidas por vídeo. Uma alquimia digital que transformava recursos públicos em capital político pessoal.

Mas o juiz Bernardo Augusto Ern, em decisão liminar, não se impressionou com os números apresentados por Rosane. Sua decisão foi categórica: “não há como tolher a liberdade do Chefe do Executivo de utilizar suas páginas pessoais da internet para demonstrar o exercício de seu múnus”. Curiosamente, não encontrei uma linha sequer na petição da advogada pedindo a censura dos perfis do prefeito. Os questionamentos eram sobre o uso da estrutura pública para alimenta-las. E ai o estranhamento com a decisão judicial.

Veja, em São Paulo, o veredito foi diametralmente oposto no caso João Doria. E trago aqui um trecho da decisão de lá que, como se rebatesse a ação de Blumenau, o Ministro Teodoro Silva Santos foi implacável: “o fato de que o réu se utilizou das imagens publicitárias do Programa ‘Asfalto Novo’, para publicá-las em suas contas pessoais em redes sociais… constitui indício mínimo suficiente de que a contratação da aludida campanha publicitária poderia ter ocorrido objetivando a promoção pessoal do requerido”.

Se um servidor não pode usar o carro oficial para buscar o filho na escola, por que o prefeito pode usar a secretaria de comunicação para inflar seu perfil pessoal? A resposta, infelizmente, é simples: porque ainda não entendemos que na era digital, dados são poder, audiência é influência, e seguidores são votos. A lei e a justiça ainda sofrem para enxergar materialidade nas práticas digitais. Quem controla a narrativa, controla o futuro eleitoral. E quando essa narrativa é financiada pelo contribuinte para benefício pessoal do gestor, não estamos mais falando de comunicação pública, mas de campanha permanente e com dinheiro alheio.

No fim parece que estamos tratando de mais um triste episódio, como de uma enchente que transborda para onde não deveria, invade territórios pessoais e deixa rastros difíceis de limpar, além de dissolver a comunicação pública como papel molhado. E ai a impessoalidade, que deveria ser princípio, parece que deixa de existir. Hoje, o filtro do Instagram substitui a Constituição. E isso não é nada bom! Nem serve ao social e ainda distorce algo mais importante que o feed das redes: é a própria ideia de República que é soterrada por camadas grossas de lama. Mas esta correnteza ainda não chegou ao mar — na próxima crônica, seguimos o curso desse rio cheio de curvas e que insiste em desaguar na política.

Tarciso Souza, jornalista e empresário

1 Comentário

  1. “Acho que era uma releitura da frase do pitoresco político Enéas Carneiro que dizia: “a caneta de um mau jornalista pode fazer tanto mal quanto o bisturi de um mau médico!”

    Neste ponto concordo em gênero, número e grau com o empresário/jornalista .

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