A narrativa oficial de que Santa Catarina é um “estado seguro”, amplamente difundida por autoridades locais, desmorona não apenas diante dos feminicídios, mas ao encararmos o panorama completo da violência estrutural. A segurança em SC se revela um privilégio de gênero e raça. Enquanto a queda em indicadores gerais de criminalidade é celebrada, o estado ostenta dados alarmantes que corroem a ideia de bem-estar social: Santa Catarina tem despontado no cenário nacional como o estado com a maior taxa de registros de injúria racial, com alta de 51% em casos em um ano (2023), chegando a uma média de 6 ocorrências por dia. Este dado é ainda mais gritante, pois o estado possui uma das menores populações negras do país, evidenciando que a violência não é apenas física, mas também simbólica e racial. Soma-se a isso a crise feminicida incessante: em 2024, 51 mulheres foram assassinadas exclusivamente por serem mulheres. Em 2025, o ritmo se mantém brutal: até outubro já eram 38 feminicídios, chegando a aproximadamente 47 mortes confirmadas por violência de gênero até 24 de novembro. É, na prática, um feminicídio por semana. Diante desse horror, a resposta estatal permanece lenta, fragmentada e insuficiente.
Essa brutalidade ganhou rosto e escancarou a falácia da segurança com o caso trágico de Catarina Kasten. A estudante de pós-graduação, de 31 anos, foi encontrada morta com sinais de violência em uma trilha da Praia do Matadeiro, em Florianópolis. Seu corpo foi achado em uma área de mata, com indícios de asfixia e violência sexual, e o agressor foi preso em flagrante. Esse assassinato bárbaro expõe de forma crua a sensação de vulnerabilidade permanente: não apenas dentro de casa, mas também fora; não só à noite, mas mesmo de dia; não apenas nas periferias, mas em áreas frequentadas por todas as classes sociais. A normalização da violência torna invisíveis os riscos que rondam a vida cotidiana de cada mulher em Santa Catarina.
E não é um fenômeno isolado. A violência de gênero é estrutural no estado, e não um surto momentâneo. Entre 2019 e 2022, Santa Catarina registrou um aumento de quase 60% nos registros de violência contra a mulher, saltando de cerca de 56 mil para quase 90 mil ocorrências. A maior parte dessa violência acontece no espaço que deveria ser o mais seguro: dentro de casa. Relatórios mostram que os principais agressores são companheiros, ex-companheiros, pais, padrastos ou outros homens próximos. O número crescente de denúncias ao Ligue 180 e os mais de 600 pedidos de medida protetiva por semana que chegam ao Judiciário (dados de 2025) confirmam que as mulheres estão buscando ajuda, mas também confirmam que o risco não diminuiu; pelo contrário, ele se aprofunda.
Este ambiente de violência se alimenta de algo central: o ressentimento masculino. Nos últimos anos, movimentos conservadores e grupos que cultivam ódio às mulheres, como a “machosfera”, “redpills” e páginas masculinistas, passaram a tratar direitos femininos como ameaças pessoais. Eles propagam a ideia de que os homens “perderam seu lugar” e precisam “retomar o controle”. Esse discurso mistura nostalgia autoritária, frustração econômica e pânico moral, transformando mulheres em inimigas e alimentando a misoginia cotidiana que, em sua forma mais extrema, produz feminicídios.
Em SC, um estado historicamente conservador, esse ressentimento encontra terreno fértil: aumentaram os dados de violência em proporção do aumento dos discursos odiosos. Narrativas que exaltam masculinidade agressiva, autoridade e virilidade aparecem em campanhas políticas e discursos de líderes religiosos e influenciadores digitais. A retórica é sempre a mesma: “as coisas pioraram porque deixamos os homens perderem espaço”, “feministas e seu mimimi”. Esses discursos não são abstratos: eles moldam comportamentos, legitimam agressões e empurram homens inseguros para ideologias que ensinam controle, humilhação e violência de gênero como solução.
E nada expõe essa contradição tão evidentemente do que Blumenau. A cidade é, há anos, o município mais inseguro para mulheres em Santa Catarina, com os maiores índices de violência doméstica. Ao mesmo tempo, é também a cidade que proibiu a educação de gênero nas escolas, desmontando exatamente o tipo de prevenção que todos os especialistas, organismos internacionais e pesquisas científicas indicam como fundamental para reduzir a violência. Ou seja: ao passo que o conservadorismo cresce, se mobiliza politicamente e tenta proteger os privilégios masculinos sob o discurso de “defesa da família”, os indicadores de violência, estupro e feminicídio também crescem.
Não é coincidência. Quando se censura o debate sobre gênero, igualdade e direitos, o que se está fazendo, na prática, é preservando a masculinidade violenta como norma social. E é justamente essa masculinidade ressentida, que reage com ódio aos avanços das mulheres, que alimenta a brutalidade que vemos nas ruas, nos lares e nas estatísticas.
Blumenau se torna, assim, o retrato mais cruel do problema: uma cidade onde o conservadorismo legislativo cresce, as instituições não garantem proteção mínima (como uma Delegacia da Mulher 24h) e as políticas públicas são moldadas para preservar o conforto simbólico de homens brancos, não a vida das mulheres. A pergunta inevitável é: até quando homens brancos legislarão para garantir os privilégios de outros homens brancos, enquanto as mulheres continuam morrendo?
Santa Catarina vive uma crise que já não pode ser chamada de “segurança pública”: é uma crise moral, civilizatória e profundamente política. Os números de feminicídios, a morte brutal de mulheres como Catarina Kasten, o crescimento da violência sexual e a omissão institucional não são acidentes: são o efeito direto de escolhas, discursos e estruturas que colocam a vida das mulheres em segundo plano. E o que o Estado não enfrenta, a sociedade tenta naturalizar. Culpa-se a vítima, normaliza-se o machismo, transforma-se tragédia em estatística. Mas a verdade é simples e inegociável: não existe Estado seguro quando metade da população vive com medo. Não existe “tradição”, “valor de família” ou “moral” que justifique um projeto político que mantém mulheres aterrorizadas dentro e fora de casa.
É por isso que este debate não é só sobre justiça, polícia, leis ou protocolos: é sobre nós. Sobre o que os homens deste estado fazem, permitem, ignoram ou silenciam. Sobre a coragem de enfrentar nossos pares, nossos amigos, nossos medos, nossos monstros. Sobre romper uma cultura que nos protege às custas da vida delas. Santa Catarina só será um lugar minimamente decente quando entender que a vida das mulheres é a régua que mede a saúde de uma sociedade. Enquanto continuarmos governados, legislados e moldados por políticas feitas para protegerem desigualdades de gênero, continuaremos enterrando nossas Catarinas. E isso não é destino, é escolha. A pergunta que fica, e que exige resposta agora, é: quantas mulheres mais pagarão com a vida até que esse Estado escolha mudar?
Repito: não existe Estado seguro quando metade da população vive com medo, de nós, homens!
Marlon Ricardo de Amorim, bacharel em Direito, servidor da Justiça Federal de Santa Catarina, educador popular em direitos humanos, membro do Centro de Defesa dos Direitos Humanos de Blumenau e membro do Grupo de Trabalho em Direitos Humanos da Justiça Federal da 4ª Região





Estado seguro só de palanque eleitoral. As polícias fazem o seu melhor mas basta ver o sistema e concluir que …
Trágico!
Impossível ser mais esclarecedor!
E assim seguimos em ruinas, acreditando que um dia possamos mudar oque está a frente de nossos olhos, mais por de descuido não enchergamos…
Excelente Artigo!!!
Parabéns pela clareza de exposição e argumentação; só não vê quem não quer!!!