Opinião | A conta que não fecha: as tensões entre produtividade e saúde no mundo do trabalho

Imagem gerada com IA

As transformações recentes no mundo do trabalho, marcadas pela fluidez das relações e pela lógica produtivista, suscitam questões centrais sobre a dinâmica entre empresas e trabalhadores. Afinal, a desvalorização profissional deriva de uma suposta falta de compromisso ou de uma cultura que trata as pessoas como descartáveis? De que modo essa objetificação produz e reforça um ciclo de desengajamento e desvalorização? E como tal dinâmica alimenta a sensação de descartabilidade que marca o trabalho contemporâneo? Essas perguntas orientam a reflexão que se segue. 

O mundo do trabalho tem passado por significativas transformações nas últimas décadas. Impulsionadas pela intensificação da globalização, essas mudanças trazem consigo novos avanços tecnológicos, maior competitividade, alterações demográficas e formas mais flexíveis — e muitas vezes instáveis — de organização laboral. Embora tais transformações possam dinamizar a esfera do trabalho e ampliar oportunidades, elas também reforçam o pragmatismo moderno em que a eficiência e a produtividade são constantemente exigidas. Absolutamente tudo se mede por resultados. O que faz com que trabalhadores e empresas enfrentem desafios crescentes diante de expectativas econômicas cada vez mais exigentes e imediatistas.

Neste contexto de constante modificação, o desafio de conquistar a estabilidade financeira ou a estabilidade de emprego cobra um preço altíssimo da saúde física, mental e emocional dos trabalhadores. Além dos desafios práticos, teóricos e tecnológicos da tão desejada empregabilidade, a cultura moral do trabalho (conjunto de valores dominante), que valoriza a performance, o lucro, o sucesso e a produtividade, acaba alimentando um narcisismo competitivo, transforma o espaço do trabalho em um campo de batalha e priva os trabalhadores de se perceberem e de se relacionarem como pessoas. O outro passa a ser visto como concorrente ou oponente a ser vencido.

Essa cultura descrita acima pode ser compreendida à luz de autores como o sociólogo polonês Zygmunt Bauman e o sociólogo inglês Anthony Giddens. Bauman introduz uma teoria sobre a natureza líquida e fluida das relações e a lógica de descarte típicas das sociedades contemporâneas. “estamos condenados a descartar e a sermos descartados”, disse Bauman. Na modernidade líquida, o trabalho — outrora um eixo de estabilidade — transforma-se em um campo de constante incerteza e autoexigência. O indivíduo precisa reinventar-se a cada dia para manter-se “empregável”, e a identidade torna-se um projeto de curto prazo. Nesse cenário, o sujeito se vê compelido a ser, simultaneamente, empreendedor e produto de si mesmo, reduzido a uma mercadoria em permanente exposição.

De forma complementar, Anthony Giddens explica que esse fenômeno (descartabilidade) está ligado a um tipo de racionalidade que organiza a vida social a partir de critérios econômicos, privilegiando resultados imediatos, controle e previsibilidade. Se juntarmos as perspectivas dos dois teóricos, essas ideias revelam como a lógica econômica dominante contribui para que indivíduos se sintam cada vez mais inseguros, substituíveis e pressionados, criando um ambiente em que o valor humano parece depender apenas de sua produtividade.

As análises de Bauman e Giddens ajudam a entender que mudanças estruturais afetam diretamente a qualidade de vida das pessoas e sua subjetividade. Elas se materializam de maneira clara quando observamos a realidade concreta do mercado de trabalho brasileiro, as demandas e tensões nos discursos de empresários e trabalhadores, cada um a seu modo, reverberam os efeitos dessa lógica produtiva marcada pela competitividade, instabilidade e exigências crescentes.

 De a acordo com o presidente da Federação da Indústria do Estado de Santa Catarina (FIESC), Mário Cesar Aguiar, as principais reclamações do setor são: a falta de qualificação, a escassez de mão de obra, a dificuldade de atrair jovens para posições industriais e técnicas, entraves para adaptação às inovações tecnológicas e às mudanças do mercado e o desafio do alto custo do trabalhador. Além disso, o crédito e o consumo estão em retração devido ao ciclo de alta da taxa Selic, o que torna o ambiente econômico mais desafiador, especialmente para setores dependentes de crédito que foram motores de crescimento anterior.

Já os trabalhadores – a parte mais frágil desta equação – se queixam dos problemas relacionados à saúde mental e bem-estar e ao afastamento do trabalho, com relatos de jornadas extensas, insegurança e pressão por produtividade, metas excessivas, assédio moral, condições precárias e falta de suporte, e por isso, reivindicam melhores condições de trabalho, redução da jornada e ganhos reais nos salários. 

Não é preciso ser um especialista em mercado de trabalho ou em psicologia para perceber que o foco, as prioridades e as queixas de empregadores e empregados são de naturezas distintas.  O problema é que elas fazem parte da mesma equação e essa conta não fecha. E, quando ela não fecha, além dos bilhões em prejuízos — ou dos ganhos que deixam de ser acumulados e que, do ponto de vista da racionalidade capitalista, costumam ser o foco — há também déficits de ordem psicológica que precisam ser enfrentados com urgência. Apesar dos excelentes indicadores do mercado de trabalho catarinense, com uma das menores taxas de desemprego do país (cerca de 2,8%), o estado registrou, em 2024, mais de 35 mil afastamentos por motivos de saúde mental, ocupando o quarto lugar entre os estados brasileiros. 

Entre as principais causas de afastamento no estado está a ansiedade (27,4% dos casos), os episódios depressivos (25,1%) e as reações ao estresse (28,6%), além da depressão recorrente e outras condições psiquiátricas. No total, foram concedidas 33.461 licenças médicas relacionadas à saúde mental, com destaque para ansiedade e depressão, que lideram os benefícios temporários por incapacidade. Esses dados nos obrigam a encarar uma constatação incômoda: os excelentes indicadores econômicos, sociais, de renda e de emprego de Santa Catarina talvez estejam escondendo — ou desviando nossa atenção de — um problema grave, que cresce de forma vertiginosa e silenciosa, afetando a saúde da população do estado.

Assim como qualquer organização ou instituição, uma fábrica ou uma empresa não é apenas um lugar físico, mas um espaço socialmente produzido pelas relações sociais complexas, pelas interações simbólicas e subjetivas que moldam as práticas e os comportamentos que ocorrem no seu interior e entorno. Sendo apenas uma partícula de um amplo ecossistema, uma empresa se orienta pela mesma racionalidade típica do mundo do trabalho. O que envolve a organização científica dos processos produtivos com o objetivo de aumentar a produtividade, eficiência e eficácia – garantindo que as tarefas sejam desempenhadas de forma lógica e otimizada, eliminando desperdícios de tempo, energia e recursos, o que do ponto de vista gerencial está correto.

O problema, é que empresas e mundo do trabalho são constituídos por relações entre seres humanos constitutivamente frágeis e limitados. E assim como ou uma empresa não é apenas um lugar físico, um trabalhador no mundo líquido-moderno não é apenas um corpo com habilidades técnicas e comportamentais, mas um indivíduo profundamente marcado pela ansiedade e o senso de desamparo. Ele carrega consigo não apenas a bagagem de suas competências, mas o peso de um mundo em instabilidade, a sombra da descartabilidade e a herança de uma pobreza afetiva que fragiliza os laços de solidariedade. 

Sua subjetividade é moldada pela lógica do “uso e descarte”, onde o medo de se tornar supérfluo – um resíduo humano da eficiência – compete diariamente com a necessidade de ser produtivo. Nesse contexto, a busca da empresa por otimização e flexibilidade encontra um trabalhador que internalizou sua própria condição provisória: a iniciativa e a criatividade são sufocadas pela urgência de se manter relevante, a cooperação é minada pela competição por sobrevivência, e a promessa de crescimento cede lugar à luta contra a obsolescência pessoal. 

Tais considerações apresentadas não descartam a existência de ambientes laborais saudáveis, com práticas organizacionais éticas que respeitam tanto a dignidade da pessoa humana quanto sua fragilidade psicológica intrínseca. No entanto, de modo geral, o mundo do trabalho tem reduzido o trabalhador a um mero portador de habilidades, e ignora que este se tornou um sintoma vivo de seu tempo: um indivíduo amedrontado e inseguro, que precisa sobreviver em um ambiente hostil, onde sua função operacional acaba se sobrepondo à sua pessoa. Em outras palavras, é alguém que perde gradualmente a própria humanidade quando transformado em instrumento, função, número ou rótulo. 

Talvez, seja por causa dessa objetificação do trabalhador que muitos desenvolvam uma espécie de desconfiança quase paranoica de que, independentemente do esforço e do comprometimento que empreendam, mais cedo ou mais tarde, serão descartados por seus empregadores. Diante da impossibilidade de projeção de um futuro estável, os trabalhadores precisam conviver diuturnamente com o medo, a insegurança, a necessidade neurótica de competir e com o ressentimento por se sentirem como objetos descartáveis. 

Assim, urge que empresas, trabalhadores, gestores, políticos, profissionais de saúde considerem recuperar a dimensão humana, relacional e ética das relações laborais, admitindo que desenvolvimento econômico e social não redunda necessariamente em desenvolvimento e bem-estar humanos.

Alexandre De Paula Amorim, mestre em antropologia social, teólogo e graduando em psicologia

Seja o primeiro a comentar

Faça um comentário

Seu e-mail não será divulgado.


*