Sentado no centro de comando, sabendo de tudo, observando telas, com o dedo no gatilho virtual, lá está ele, contorcendo-se de tesão por uma série de pessoas estendidas no chão, mortas. Uma satisfação quase sexual, o brilho nos olhos cresce ao receber a notificação de que o número de cadáveres subiu. Prazer mórbido, capaz de se excitar imaginando lambendo a ponta dos pés, que ainda pingam sangue, de um pobre corpo preto, favelado, dilacerado.
Um dia, um maluco beleza cantou ao mundo os delírios de uma sociedade alternativa. Cigarro exprimido caprichosamente no canto da boca, um ácido fritando os miolos e a letra contestadora defendendo que cada um deveria possuir o direito de viver como quiser, morrer quando e como desejar. Por óbvio os dias na terra não são assim. As leis minimamente disciplinam o fluxo de almas encarnadas e (de)penas. Outras coisas, que convencionamos chamar de dor, nojo, repúdio, empatia, amor…, também prestam significado e motivação para permanecer aqui ou partir desta para uma “melhor”.
Eu não sei você, mas não tenho a menor simpatia pela morte. Não é questão de temer a chegada daquele instante final de minha existência consciente neste planeta. Nem mesmo representa algum pensamento contemplativo ao além. “O inferno e o paraíso é o que estamos vivendo. Acredito que a vida é a aventura das moléculas, que não há nada para trás nem pela frente. A morte é talvez o que dá valor à vida. Tudo o que é vivo está condenado a morrer”, ensinou, certa vez, Pepe Mujica, o florista que foi presidente uruguaio.
Há quem sinta prazer com a morte. Admito que tenho repulsa. Bicho, planta ou gente morta despertam os mais variados instintos repulsivos. Sou capaz de sentir o gosto amargo da inflamação, o cheiro de carne apodrecendo e o toque cadavérico, gelado, imóvel… Resumindo, não importa a proximidade emocional com aquele que partiu, meu estômago reage, os pulmões murcham, braços e pernas parecem não responder mais aos comandos naturais e o coração? Sinto que vai apertar o peito contra a parede das costas.
É uma tal angústia por assistir o fim daquelas células. Saber que não existirá amanhã para o falecido. E toda dor que um dia foi dele ficará para aqueles que mais o amavam. Se boa parte do mundo encara o passar dos dias crendo em alguma coisa, mesmo sem evidências de que existe, não me junto neste coro de esperança…
Mas, quando a morte é de um criminoso, alguém rotulado como “muito ruim”, que atentou contra o coletivo, condenado por chefiar confessadamente uma organização armada, por exemplo (como Bolsonaro), você consegue celebrar? Eu não! Observo pelas redes, nos bares e conversas de esquina: há quem brinde. O sangue escorre como vinho em celebração macabra. Custo acreditar, mas a verdade é que muitos vibram com cada corpo que cai, sentem um tesão sádico, uma satisfação mórbida que aumenta proporcionalmente à carnificina. Sorriem satisfeitos diante das pessoas empilhadas, como no Rio de Janeiro. E uma parte da sociedade reage como se assistisse à vitória de seu time no campeonato, com cerveja gelada, memes compartilhados, discursos enfáticos sobre “bandido bom é bandido morto”.
Neste exato momento, em que você faz a leitura deste texto, esteja certo de que existem pessoas sentadas se imaginando virtualmente ao lado do carrasco que aperta o play na sala de comando da barbárie. É um horror, é nojento… Gente com elevado grau de educação formal que, ao mesmo tempo, apresenta um nível de leitura e compreensão do mundo tão baixo que espanta.
Quando foi que nos tornamos confortáveis assim com essa matança toda? Em que momento a morte deixou de ser tragédia para se tornar espetáculo, entretenimento, motivo de comemoração, bandeira política?
Não estou defendendo bandido. Não venham com essa. O que reflito é algo mais fundamental, que é a nossa impossibilidade de sermos humanos e virar a página da barbárie. Porque celebrar morte, qualquer uma que seja ela, nos desumaniza coletivamente. A história é o retrato do que a crueldade é capaz de entregar para a sociedade. A matança como política de segurança pública nunca, em lugar nenhum ou momento do passado, trouxe paz ou melhorou os índices de segurança. Essa falência tem o lastro das ditaduras latino-americanas, das guerras às drogas ao redor do mundo, que colhem sempre a resposta de mais violência, mais morte, mais dor e nunca, jamais, menos crime.
Não estou pedindo abraços para quem fez escolhas que feriram outros. Nem mesmo coerência aos cristãos (até por eu não ser um) que bradam nas redes sociais, celebrando os mais de 120 mortos nos morros cariocas, um pingo de lógica à sua fé, ao mandamento basilar de que só cabe a Deus dar e tirar a vida. Também desejo fugir de qualquer possibilidade de deixar a impressão de que estou romantizando o crime. O que enfatizo é que celebrar execuções em massa nos arranca pedaços de humanidade que talvez nunca mais recuperemos.
“Vocês vão envelhecer, vão ter rugas e, algum dia, vão se olhar no espelho e terão que se perguntar, naquele dia, se vocês traíram a criança que tinham dentro de si”, provocou Mujica. Porque quando celebramos a morte do outro, mesmo que esse outro tenha feito coisas terríveis, estamos matando algo dentro de nós. E, ao fim, traindo aquela criança que fomos um dia, que acreditava que o mundo poderia ser mais gentil, mais justo, mais humano. Estamos construindo uma sociedade onde a violência é entretenimento e o extermínio é política pública.
O que o velho florista uruguaio nos ensinou sobre a morte dar valor à vida parece ter se perdido nessa sede por sangue disfarçada de justiça. “O que me assusta é o narcotráfico, não a droga. E, pela via repressiva, é uma guerra perdida. Está sendo perdida em todos os lugares”, ele alertou. A justiça não se alimenta de corpos, nem se regozija com carnificinas ou oferece docinhos para os torcedores de execuções. O que presenciamos é uma vingança coletiva, é prazer sádico travestido de ordem pública, é a celebração da morte como se fosse solução quando, na verdade, é apenas a perpetuação de um ciclo de violência que nos arrasta cada vez mais fundo no abismo.
Mas seguimos insistindo na mesma estratégia fracassada, esperando resultados diferentes. Poderia existir uma definição melhor para insanidade que esta? Me recuso a normalizar isso, a aceitar que precisamos de pilhas de mortos para nos sentirmos seguros. Até porque não funciona, nem funcionou e não funcionará! A história já provou o fracasso da barbárie. É assustador perceber que para muitos esta é a única resposta possível para a complexidade do crime, o beijo doce da simplicidade brutal de execução em massa.
Parece que vivemos no planeta o fragmento final de civilização, que já se esfacela aos poucos. Uma confirmação de que desistimos de construir pontes e preferimos empilhar cadáveres. Quem possui repúdio à morte acompanha, horrorizado, esperando a pior resposta dos que hoje brindam com sangue, dos que aplaudem quando o Estado executa sem julgamento. Infelizmente, nestes dias, os líderes que ganham popularidade são aqueles que têm tesão por corpos no chão. São estes que uma parte relevante da população aplaude de pé.
E isso, meus caros, não é segurança pública. É barbárie. E dói admitir que estamos todos, de alguma forma, pagando ingressos para assistir a esse espetáculo de horrores, acreditando que o sangue derramado hoje nos protegerá amanhã. A história, por sua vez, já provou, repetidas vezes, que neste mar de ilusões seguiremos afogados, afundando cada vez mais, na terrível violência que tantos falam em combater.
Tarciso Souza, jornalista e empresário






Que façam a limpeza já que a política brasileira já foi corrompida. Vide Judiciário defendendo de forma mascarada a defesa de bandido. Homens de bem LEVANTEM-SE!