Opinião | Encruzilhadas: Brasil! Quo Vadis? (Para onde vais?)

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As promessas parecem fazer parte da trajetória do Brasil colônia ao Brasil república. São mais de quinhentos anos de expectativas, de sonhos, lutas e, em certa medida, de frustrações.  No contexto da “descoberta” e/ou “invasão” europeia/lusitana das terras tupiniquins, os colonizadores recém-aportados no litoral sul da Bahia, hoje Porto Seguro, acreditavam ter alcançado o éden, o paraíso, o jardim das delícias. Terra farta, natureza exuberante, seres humanos expostos em toda sua naturalidade e espontaneidade.  

Passados os deslumbramentos iniciais abateu-se sobre a colônia a voracidade metropolitana da exploração. A violência do trabalho escravo forjou ao longo de séculos um ethos escravocrata que caracteriza o tecido social brasileiro até a atualidade. Referido ethos se manifesta no desprezo das elites em relação às demandas por justiça social (compreendida como a garantia de direitos básicos aos indivíduos e restituição por injustiças históricas; por reconhecimento do direito à cidadania aos brasileiros) manifestando-se também na violência com que os aparelhos repressores do Estado em suas diversas instâncias federativas imprimem sobre moradores de periferias, sobre jovens, negros, homossexuais, entre outros grupos sociais; também se manifesta no patrimonialismo, a partir do qual determinados segmentos sociais se apossam e se locupletam com recursos públicos, entre tantas outras variáveis deste ethos que se apresenta como marca originária do tecido social brasileiro.  

Nesta direção, há um ditado popular que demonstra de forma sibilina como o ethos escravocrata atravessa o tecido social brasileiro, manifestando despudoradamente em toda sua brutalidade no seguinte jargão: “Manda quem pode, obedece quem tem juízo”.  Entre outras variáveis analíticas possíveis, a brutalidade deste ditado popular se apresenta na forma da uma assimilação cínica, naturalizada, supostamente inofensiva da violência que atravessa o tecido social brasileiro. É a manifestação de históricas práticas deletérias em relação aos bens públicos exercidas por grupos econômicos e políticos em detrimento dos milhões de brasileiros e brasileiras explorados em sua força de trabalho, expropriados e impedidos de participarem da riqueza socialmente produzida, mas individualmente acumulada, concentrada nas mãos de minorias. Ou seja, é no contexto de violência generalizada (ethos escravocrata) promovida pelas oligarquias coloniais e, atualmente pelas oligarquias que se apossaram da velha e da nova república, que se trata de manter-se vivo, de sofrer menos, de afirmar que é preciso continuar sobrevivendo, ou como na expressão contemporânea da música sertaneja da dupla Gilberto e Gilmar: “Tá ruim, mas tá bom”.

No bojo do ethos escravocrata, do Brasil colônia à atualidade viceja no tecido social, como expressão do sofrimento, da violência, da ausência de reconhecimento, projeções políticas messiânicas. Em algum momento surgirá um “messias”, um salvador da pátria. Um brasileiro iluminado, geralmente “homem” de bem e, sobretudo de “bens”, que colocará ordem na política e levará o povo brasileiro à prosperidade, ao paraíso prometido.  

Vejamos alguns dos “Messias” que se apresentaram em nosso passado recente:  Militares. Em nome da ordem social, da pátria, da família, de Deus e da propriedade e, com o apoio da elite empresarial, da oligarquia rural, da imprensa e, de parte da Igreja Católica deram um golpe de Estado em março de 1964. A ditadura militar permaneceu 20 longos anos no poder. Perseguiram, torturaram e mataram brasileiros que questionaram a usurpação do exercício da política e da definição dos rumos da nação por parte dos trabalhadores(as), dos(as) cidadãos(as) brasileiros(as).  Em algum momento, a sociedade brasileira terá que se encontrar com os horrores promovidos pelo regime militar entre 1964 a 1984. Formas de reparação dos crimes cometidos contra a sociedade terão que alcançar êxito. Está é uma das condições basilares para se avançar na constituição de um projeto de desenvolvimento com justiça social.  Mas, em pleno século XXI, não são poucos os “homens de bem” que anseiam messianicamente pelo retorno dos militares ao poder. 

Manifestações messiânicas posteriores ao regime militar manifestaram-se nas eleições de 1989, que elegeram como presidente Fernando Collor de Mello. O jargão de sua campanha eleitoral era: “caçador de marajás”. Tal jargão, que caiu na “boca do povo” nada dizia, mas tudo escondia, sobretudo em relação à origem social e política do candidato eleito.  Noutra direção, “Marajá” é um determinado segmento de poder constitutivo da sociedade de castas da Índia, povo com tradição civilizatória milenar praticamente desconhecida em sua totalidade pelos brasileiros.  As esperanças depositadas no caçador de marajás vindo do Estado de Alagoas se apresentaram proporcionais às decepções advindas de seus dois anos de governo.  Voltamos a estaca zero. É preciso esperar, clamar por um novo messias.

E ele veio integralmente, inclusive inscrito no próprio nome: “Jair Messias Bolsonaro”.  Daqui em diante já se tem noção do inferno que foi a passagem deste último messias nas estruturas de poder da sociedade brasileira. Há, entretanto, quem se mantenha firme na fé ao referido messias, que se revelou no exercício do poder um estabanado anticristo a serviço majoritariamente dos interesses das oligarquias agrárias, urbanas e especulativas nacionais.  Enfim, o saldo dos messianismos recentes da história política brasileira é o abandono do tecido social brasileiro à própria sorte. Choro, decepção, frustração, mal dizer: “este país nunca vai dar certo”… O ódio à política, entre outros fenômenos correlatos e que necessitam ser pacientemente interpretados, passaram a se manifestar, a fazer parte do cotidiano do brasileiro, seja ele evangélico, católico, luterano, adventista, ou de qualquer outra denominação religiosa existente em solo nacional.

Para além do messianismo, também já acreditamos que éramos o país do futuro. “Cento e setenta milhões em ação, pra frente Brasil” (jargão da copa do mundo de 1970).  Algo de errado aconteceu. Parece que o futuro passou. Estamos envelhecendo e continuamos afundados no ethos escravocrata que nos constituiu e, sem justiça social, desprovidos de acesso à cidadania plena, de respeito pelos bens públicos, de  cultura cidadã fundamental para que se possa qualificar o debate político, preservar o espaço público e garantir os bens públicos necessários ao desenvolvimento nacional com justiça social.  Mas, também já fomos o gigante que havia acordado e, ao que tudo indicava naquele momento, decidido a fazer alguma coisa. Ato contínuo: parece que voltou a dormir. Com esta atitude parece querer enviar a mensagem: “resolvam-se em suas contradições e depois me chamem para ver o que ainda podemos fazer”. 

Mas, a história é dinâmica. Nos últimos meses a deusa da “Fortuna” colocou a sociedade brasileira em duas encruzilhadas históricas. Nos presenteou com o insuportável convite a tomarmos nosso destino em nossas próprias mãos.  Vejamos o que a deusa “Fortuna” nos proporcionou. No plano interno, as diatribes do Congresso Nacional, entre elas: o sequestro de parte do orçamento nacional (orçamento secreto); derrubada do decreto do poder executivo pelo aumento do IOF; a resistência em levar adiante o projeto de lei do executivo de aumentar a alíquota de isenção do imposto de renda; a aprovação na alta madrugada da desregulamentação ambiental, entre outras ações do gênero, mobilizaram reações nas redes sociais demonstrando insatisfação com as posturas do poder legislativo que se apresentam frontalmente contrárias aos anseios do extenso e expropriado tecido social brasileiro.  

Parece que a ação predatória do Poder Legislativo sobre os interesses e demandas da sociedade brasileira levou a algum grau de compreensão em setores do tecido social, de que se trata de uma tentativa de sequestro integral do Estado brasileiro por parte dos representantes do capital financeiro especulativo  e de setores das elites brasileiras que se beneficiam secular e extensamente dos recursos e bens públicos (patrimonialismo).  Some-se a estas constatações a percepção da imoralidade e ilegitimidade (mesmo que legal) dos super salários recebidos por funcionários dos três poderes (legislativo, executivo e judiciário) nas três esferas federativas (municípios, estados e união), entre outras benesses estapafúrdias pagas a militares, ex-governadores, ex-senadores, a lista segue… e a conta aumenta.

No plano externo, a deusa Fortuna nos colocou diante do tarifaço imposto pelo  presidente dos EUA e do deep state norte americano. A exportação dos produtos brasileiros (que é historicamente deficitária, ou seja, compramos mais que vendemos aos Estados Unidos) passa pagar até 50% de impostos para poderem entrar no mercado americano.  A análise no campo político, têm apontado  que o tarifaço faz parte de uma estratégia político-econômica da “Casa Branca” de promover uma “guerra fria” mundial assentada inicialmente numa guerra econômica com o mundo. Ou dito de outro modo,  trata-se para os Estados Unidos de enfraquecer a dinâmica multipolar que tem se tornado tendência, sobretudo, entre os países do Sul global, cujo principal bloco é o BRICS e que se posicionam em favor de um mundo multipolar e de instituições políticas e jurídicas internacionais que possam garantir o equilíbrio geopolítico entre povos e países do mundo, afastando-se do unilateralismo norte-americano que se afirmou no inicio dos anos 90 do século XX, após a queda da União das Repúblicas Socialista Soviéticas.  

Ainda nesta direção, vale apontar que os BRICS se posicionam a favor do multilateralismo no plano econômico como estratégia de enfrentamento das dicotomias, das contradições e, sobretudo, das imposições das nações ocidentais desenvolvidas, majoritariamente EUA e Europa Ocidental sobre os povos periféricos, e/ou subdesenvolvidos do Sul global. Trata-se para estes povos e países de constituir relações internacionais que promovam propostas de desenvolvimento com soberania nacional em concertação internacional diante da emergência climática, da miséria e da fome de parcela significativa de seres humanos localizados nos respectivos países.  

O tarifaço de Trump é apenas uma das estratégias para promover uma guerra fria mundial que desestabilize o avanço das propostas políticas e econômicas multilaterais dos BRICS, dos povos do Sul global. Trata-se de garantir a qualquer preço, a liderança da hegemonia norte-americana sobre o mundo, mesmo que para isso tenha que ser lançado no lixo a ordem mundial constituída pós-segunda guerra baseada em regras, ou nas regras de quem exercia de forma hegemônica as relações de poder globais. 

Ou dito de outro modo, tona-se explícito que tais regras, se existiram, ou se existem em protocolos de intenção de governos e nas instituições internacionais, não se constituíram na prática na construção de uma concertação internacional justa e solidária entre povos e países. Tal condição pode ser afiançada pelo conjunto de conflitos e guerras em curso no mundo na atualidade, bem como na miséria e fome de parcela significativa da população mundial, bem como nos limites ambientais e vitais nos quais estamos inseridos.

Diante desse cenário, sabe-se que parte das reações nacionais às tentativas de intervenção política e econômica norte-americana depende, em última instância, das articulações promovidas pelo governo federal e pela diplomacia brasileira. Nem por isso se deve ignorar a recepção do tarifaço nas ruas, de onde, a princípio, todo poder emanaria.

Embebido nos debates anteriores sobre a tentativa do governo federal de taxar super-ricos e diminuir a alíquota do imposto de renda para salários até R$ 5 mil reais e a tentativa do congresso nacional de aumentar o número de cadeiras a ser bancado pelos cofres públicos, o debate público se viu apressadamente obrigado a voltar as atenções para as relações internacionais empreendidas pelo Brasil. É nessa direção que, na emergência dos acontecimentos, inúmeros temas se misturam, de modo que o brasileiro precisa lidar com o que é correntemente existente e com os discursos que oferecem as mais diversas interpretações dos fatos.

Apesar das inúmeras análises e possíveis interpretações, aqui é importante pontuar um aspecto que parece perpassar as dinâmicas políticas das últimas quatro semanas: o modo como o Brasil compreende a si mesmo. Ou melhor, os diferentes modos pelos quais os brasileiros compreendem o próprio país e qual a interpretação que admitem acerca de relações políticas e acontecimentos históricos. A pergunta que determina os diferentes possíveis posicionamentos diante de temas como a taxação de super ricos, escala 6×1, diminuição da alíquota de impostos, tarifaço, etc. e que merece ser elaborada pelos brasileiros é simples: o que nós somos? O que somos enquanto país? O que é o Brasil?

Isto é, o posicionamento sobre assuntos tais como soberania nacional, justiça social, reparação histórica e relações de dominação não depende de outro fator a não ser a visão de mundo constituída sobre a história do Brasil, o papel dos diferentes personagens que a compõe, as expectativas sobre as instituições e, no limite, a visão sobre o que é o povo brasileiro. Nesse âmbito, o exercício de refletir sobre os fatos políticos recentes é, antes de tudo, um exercício de auto-reflexão, de auto-análise. Encontrar um posicionamento aos desafios políticos que têm se apresentado é colocar em jogo não apenas nossas visões sobre o que o Brasil é, mas também sobre o que deve ser.

É por isso também que a análise desses fatos é tão importante: porque a compreensão de um povo sobre como deve ser distribuída sua carga tributária, como deve ser dividida sua riqueza socialmente produzida, sobre como deve ser organizado o trabalho produtor de riqueza e como deve se portar o país diante da tentativa de chantagem estrangeira não significa uma simples opção diante de um FLA x FLU. Significa tomar uma posição diante da realidade histórica e social do país e, nos momentos de encruzilhadas em âmbito teórico, ser capaz de refletir os pressupostos sobre os quais se assentam visões de mundo afeitas ao entreguismo e rejeitadoras de projetos de justiça social.

Não significa simplesmente assumir em praça pública (por sinal esvaziada em 03/08/2025) uma posição política e as bases nas quais ela se assenta. Significa também, e talvez, sobretudo, assumir, no exercício próprio de auto-reflexão, quais as origens e implicações das posições defendidas. Significa confrontar-se com a contradição existente entre o amor à pátria e a comemoração pela possível derrocada econômica brasileira a partir do tarifaço. Significa, então, repensar  o que se compreende como amor à pátria, abrindo espaço para que “patriotismo” signifique almejar consequências sociais e econômicas devastadoras para parte dos compatriotas como o troco por decisões jurídicas elaboradas diante do cumprimento do devido processo legal e da observância da Constituição brasileira – ritos que, nos idos de 2018, pareciam sólidos garantidores da “Justiça” brasileira. Significa, ao mesmo tempo, abandonar a noção de autonomia, de dar-se o próprio destino, em função da submissão a desmandos estrangeiros. Significa, então, compreender que patriotismo agora deve ter a ver com a impossibilidade de auto-afirmação diante do mundo e com o imperativo da obediência a algum coronel que ouse falar mais alto. Num exercício de auto-avaliação, significa admitir que palavras e conceitos podem ser distorcidos, e que há a disposição para o auto-engano: sou patriota, e isso significa amar os EUA, acima de tudo.

Tomando-se a auto-reflexão a partir dos fatos internos à política brasileira, especialmente os debates sobre escala 6×1, taxação de grandes fortunas e diminuição do imposto de renda para salários até R$5mil reais  também se trata de refletir sobre os pressupostos de algumas posições. Isto é, indagar os “por quês” necessários à compreensão das visões de mundo em jogo. Daí que tal exercício pode levar à compreensão de que as feridas mal curadas no corpo e na psiqué brasileira não persistem ao acaso, que o ethos escravocrata não é mero detalhe na constituição das relações sociais.

É nessa direção que a ojeriza presente em parte da classe média e alta a propostas de justiça social, programas sociais contra a fome e a miséria, e propostas de reparação histórica, não parece ter origens apenas no temor das classes médias de se tornarem os próximos pobres. A auto-análise é necessária, nesse sentido, para compreender se tal ojeriza não se assenta em visões extremamente negativas sobre as pessoas pobres e sobre aqueles que dependem de salários – os empregados. 

No íntimo, nas verdades sabidas, porém não enunciadas, sabe-se que o assistencialismo não é um problema de orçamento, ou melhor, que orçamento não é um problema: recorre-se a ele para que pague juros, para lidar com as falências de grandes empreendimentos, para aumentar super-salários de funcionários do poder judiciário, legislativo, executivo; para garantir emendas do orçamento secreto. É sabido, porém não enunciado, que os cofres públicos podem ser a grande mãe das aventuras financeiras dos super-ricos. Só não podem, os cofres públicos, servirem para conferir dignidade aos que historicamente foram violentados, despossuídos de terra e do estatuto de seres humanos. No contexto do ethos escravocrata que constitui o tecido social brasileiro a questão social é caso de polícia, “público” é o gasto, e “privado” é o investimento.

Entende-se então porque, para alguns grupos, é inaceitável, é quase um desacato, que existam parcelas da população que não estejam dispostas a receber sub-salários como retorno ao exercício do trabalho em 6 dos 7 dias da semana. Entende-se porque as empregadas (sempre no feminino e constantemente racializadas) são, para efeitos de conversa, “como se fossem” da família. Para efeitos legais, entretanto, é melhor que não consigam comprovar vínculo empregatício; é melhor que sejam PJs prestando serviços.

Na ausência de reconhecimento das próprias origens, na ausência de olhar para si, entende-se porque o discurso anti-justiça social convive com o fato de que colonizadores europeus receberam, não compraram, terras. Terras essas que por gerações têm garantido a prosperidade da agricultura e da indústria, que têm conferido aos herdeiros da colonização o título de “proprietários”. Privilégio esse que passa ao largo do tratamento oferecido aos escravos “libertos” pós-abolição, largados ao próprio azar e às relações violentas costumeiras dos senhores de engenho. Privilégio esse assentado sobre a despossessão, sempre violenta, dos indígenas onde constituíam suas comunidades. É no desconhecimento da própria história, ou na ignorância proposital dela, que mini e latifundiários remanescentes de políticas estatais de distribuição de terras podem bradar contra o asseguramento de 3 refeições por dia para crianças miseráveis, filhas, netas, bisnetas dos violentados dessa terra.

Auto-reflexão significa, ainda, indagar de onde vêm as demais pré-concepções e visões de mundo que embasam posições políticas vinculadas à repressão e violência de Estado. E isso não se restringe a um exercício de consciência pessoal. Trata-se de tarefa civilizatória, que permite conhecer as raízes de visões de mundo conglomeradas em posições políticas que em si são contraditórias, e na ágora pública ancoram o debate em temas que, a essa altura, já deveriam estar superados num país com projeto de nação.

A auto-reflexão significa compreender o que falta, em termos de consciência social, para que um povo compreenda suas raízes vinculadas à exploração, expropriação e violência e reconheça, então, a condição subalterna a que é historicamente relegado enquanto país, e a condição de violência que internamente relega aos despossuídos e violentados. 

Auto-reflexão significa compreender o ressentimento dos segmentos que, impossibilitados de se realizarem como senhores de engenho, só podem ainda bradar contra a cidadania conferida aos seus subjugados. Auto-reflexão tem como resultado situar um país em suas contradições e tornar exposta a intensa luta pela sobrevivência que participa do cotidiano dos cidadãos brasileiros, em dimensão coletiva e estrutural. Significa localizar tais contradições nas estruturas próprias do modo como o Brasil se constitui, e não simplesmente na alegada preguiça dos sub-remunerados, na contramão dos discursos de que “não tem pobreza que resista a 14 horas de trabalho”.

Tal exercício de auto-reflexão resulta na compreensão de que as mazelas que historicamente compõem a história brasileira permeiam nossas concepções de mundo. Significa reconhecer que as contradições constitutivas desse país não estão apagadas de nossas estruturas de poder, e que de fato não nos reavemos com parte de nossa história. Se é que existe algo tal como a lata de lixo da história, ela está situada em algum campus distante da praça pública, já que de tempos em tempos ressurgem as tentativas de suspender conquistas tais como liberdade de expressão e democracia, socialmente usufruídas às custas dos que foram jogados ao mar.

As situações envolvendo aumento do IOF, tarifaço, escala 6×1, para além da importância que têm nos rumos do país, revelam o estatuto de consciência que permeia a sociedade brasileira. Revelam o passado sempre presente nalgumas parcelas e ao mesmo tempo, porém, não escorrem meramente no debate público e se esvaem em seu potencial de transformação social. Se tais debates permanecem presentes, é também porque reverberam a consciência e as demandas socialmente constituídas. 

O que nos cabe enquanto cidadãos é não permitir que os debates decisivos ao país ainda em constituição sejam determinados pela truculência de ameaças. Pela mentira disseminada e consumida a partir de redes sociais. Pelo preconceito e sequestro da riqueza socialmente produzida por parte de oligarquias nacionais descomprometidas com um projeto de desenvolvimento nacional assentado na justiça social.  Isso passa pela reflexão, e pela difícil auto-análise, sobre o que fomos, o que continuamos sendo, e o que queremos ser.

 

Sandro Luiz Bazzanella, professor de Filosofia e Sandra Eloisa Pisa Bazzanella, estudante e pesquisadora de Filosofia

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