Opinião | A indústria da multa existe!?

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EXISTE, mas essa pergunta pode ser respondida de duas maneiras, dependendo de quem responde. É quase uma guerra de interpretações e discordâncias: para o condutor, é muito claro que o órgão fiscalizador trabalha apenas para multar e arrecadar mais dinheiro; para o governo, por sua vez, os condutores brasileiros podem ser uma mão de obra infinita para alimentar a chamada “indústria da multa”.

Fato é que somos um dos países campeões em cometimento e aplicação de multas no mundo. É de se pensar realmente se existe uma indústria, ou nossos condutores cometem muito mais infrações do que os condutores do resto do mundo. A cada minuto, no trânsito, 142 multas são aplicadas no Brasil. Incrivelmente, no quesito aplicação de multas, somos um país que deu certo: nossa eficiência na fiscalização de trânsito se equipara à de países de primeiro mundo.

Por outro lado, ao analisar o comportamento dos condutores, fica evidente que a quantidade de multas poderia ser ainda maior. É um verdadeiro descaso: imprudências, imperícias, negligências das mais variadas — excesso de velocidade, uso do celular ao volante, ultrapassagens proibidas, embriaguez, crimes  — as infrações são tão comuns e normais que, aos olhos acostumados com elas, acabam passando despercebidas. Ou você nunca cometeu nenhuma dessas ? O errado, com o tempo, vai se normalizando. Na frase atribuída a Mahatma Gandhi:

“Um homem não pode fazer o certo em uma área da vida enquanto está ocupado em fazer o errado em outra. A vida é um todo indivisível.”

De qualquer maneira, o poder público parece ser o maior culpado — ou está errando por excesso ou por falta. Falta de planejamento em educação, tratamento desiguais e muitas vezes sem critério ao punir, além de impunidades recorrentes nas esferas administrativas, onde julgamentos se arrastam, demoram ou sequer acontecem, são até normais. 

Olhando exemplos mundo afora, parece não existir uma fórmula mágica para gerir as punições decorrentes das infrações de trânsito. As abordagens são as mais variadas: países como Finlândia e Japão, por exemplo, aplicam punições muito mais rigorosas — com multas que podem chegar a 50 mil reais e penalidades que impedem o condutor de dirigir, seja por curtos períodos, já em uma única infração, seja por longos períodos, no caso de reincidências.

Outros países punem com mais ou menos rigor do que o Brasil, mas invariavelmente buscam calibrar as multas para que sejam proporcionais à gravidade da infração e à realidade econômica do infrator. A ideia é simples: que a punição realmente faça o condutor repensar suas atitudes. Cobrar um valor apenas por cobrar não parece ser a solução; soa apenas como arrecadação, o que acaba alimentando o temor popular de que tudo não passa de uma “indústria da multa”.

Não é incomum que, ao serem confrontados no tema, os agentes de trânsito ouçam dos condutores afirmações do tipo: “tá me multando pra pagar teu salário” ou, em operações de fiscalização, “isso é só pra arrecadar pro 13º”. Ou ainda: “o único interesse é aumentar a arrecadação do órgão de trânsito”. 

Dizer que qualquer órgão de trânsito ou poder público depende exclusivamente das multas para funcionar não seria verdade. Mas também não seria correto afirmar que não há dependência alguma.

Por lei, salários não podem ser pagos com valores arrecadados por multas. Contudo, muitos dos custos operacionais — como viaturas, fardamentos, manutenção de sinalização, educação e o próprio sistema— são custeados com esses recursos. Ou seja, mesmo que o órgão sobrevivesse com outros recursos, grande parte do que existe hoje inclusive na segurança pública é, sim, proveniente das infrações. 

Isso, por si só, não é necessariamente um erro ou um acerto. Pode-se até argumentar que é mais justo que os infratores, que colocam a vida de outros em risco, sejam os responsáveis por prover a estrutura dos órgãos de trânsito e segurança, em vez de toda a sociedade pagar por isso. Em outras palavras: o infrator paga para que todos tenham um trânsito melhor.

Em Blumenau não é diferente. Em 2024, foram aplicadas cerca de 195 mil multas de trânsito (um ano talvez atípico), o que equivale a aproximadamente 22 multas por hora.

Isso é muito? É pouco? Poderia ser mais? Ou, na verdade, a maioria dos condutores que cometem infrações ainda passam impunes?

Essas são perguntas que precisam ser feitas quando discutimos a fiscalização de trânsito — não apenas para avaliar números frios, mas para refletir sobre a eficácia das ações, a percepção da sociedade e o compromisso com um trânsito mais justo e seguro para todos.

Particularmente jamais participei de uma reunião em que algum gestor trouxesse qualquer proposta ou cobrança para que os agentes de trânsito realizassem mais ou menos autuações (multas).

Obviamente, a lembrança do próprio artigo 280 do CTB — “Ocorrendo infração prevista na legislação de trânsito, lavrar-se-á auto de infração” — já deixa claro que a obrigação profissional do agente é autuar sempre que presenciar uma infração. Não há discricionariedade nessas situações: orientar é antes; após a infração, a obrigação legal e ética é autuar.

Se não fosse assim, o resultado seria apenas injustiça e desigualdade no tratamento dos infratores. Enquanto alguns seriam autuados por dirigir sem cinto de segurança, ao celular ou embriagados, outros não seriam, apenas por escolha pessoal do agente. Isso tornaria a fiscalização não só injusta, mas também ineficiente, e provavelmente incapaz de alcançar seu objetivo maior: reeducar e fazer com que o infrator deixe de repetir a conduta irregular.

Diante disso, ainda persistem os inúmeros pedidos vindos de órgãos comunitários, associações e representantes da sociedade, requisitando mais fiscalização em frente às suas ruas, suas casas, suas empresas ou nas escolas dos filhos.

Curiosamente, muitas vezes são as mesmas pessoas que, quando estão longe desses locais, aceleram, ultrapassam, desrespeitam as leis de trânsito e colocam a si mesmas e os outros em risco. Querem que a lei seja cumprida para proteger os seus lares e entes queridos, mas, para si próprios, esbravejam contra uma suposta “indústria da multa”. Querem que os outros quando infratores sejam pegos, nunca eles. “Aos amigos os favores, aos inimigos , a lei” Maquiavel.

O próprio debate sobre trânsito costuma nascer justamente das autuações e multas. Quantos condutores só passaram a perceber a sinalização — sejam placas de velocidade, estacionamento, ou conversões — depois de serem fiscalizados e multados? Para muitos, é quase um chamamento obrigatório para que finalmente prestem atenção ao trânsito.

Afinal, o acidente é apenas uma infração que não deu certo.

Lembro-me bem de um caso, por volta de 2016. Na central de operações, recebemos a denúncia de um motociclista circulando embriagado na região do bairro Garcia. Pouco depois, já havia sido visto na área central. Por pelo menos três vezes, a central de operações requisitou que algum agente na região efetuasse a abordagem.

Era por volta das 17h15. Na época, quase toda a corporação nesse horário estava empenhada na travessia dos escolares, a comunicação no rádio seguia: central em QAP, agentes comunicando que estavam em  J10 (no local) nos escolares, mas ninguém conseguiu abordar o condutor embriagado. Minutos depois, uma nova comunicação: o motociclista havia sofrido uma queda na Via Expressa e veio a óbito no local.

E a pergunta que fica é inevitável: se ele tivesse sido abordado, autuado e a infração cessada, talvez sua queda — e a consequência fatal — tivessem sido evitadas.

Quantas outras vezes isso já não aconteceu? Quantos acidentes foram evitados porque alguém foi autuado a tempo? Há quem critique, há quem reclame. Mas há também quem já entendeu: fiscalizar é salvar vidas.

A fiscalização de trânsito costuma ser vista por muitos como exagerada ou apenas um meio de arrecadação, mas também é inegável que a imprudência dos condutores exige algum rigor. É verdade que talvez falte mais educação, critério e clareza por parte do poder público, e que muitas vezes a multa soa mais como punição injusta. Por outro lado, também é verdade que ela faz muitos refletirem e pode evitar acidentes graves. No trânsito, como na vida, é preciso encontrar o equilíbrio: não normalizar o errado, mas também não tratar todo condutor como inimigo.

Lucio R. Beckhauser, Agente de Trânsito, Especialista em Direito de Trânsito

1 Comentário

  1. Só é multado quem infringi as leis , se respeitar o código de trânsito e as sinalizações, não haverá punição .
    Entretanto ficam as perguntas :
    -Quais gestores públicos são multados por não manter as ruas com o piso regular ?
    -Quais gestores são multados por não manterem as sinalizações em dia?
    Esta balança só pesa para um lado e é o lado que paga todas estas conta e não recebe o retorno devido .
    Andem pelas ruas de Blumenau , vejam como esta a maioria das ruas , onde está o gestor público , onde é investido os recursos oriundos das multas ?

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