Talvez, no auge do meu privilégio cristão, não me lembro de ter passado pelo sentimento de ter minha fé negada, bom, pelo menos até as notícias que me chegaram nesta semana.
Nos últimos dias, fui surpreendida pela boa notícia de que o querido e amigo padre Júlio Lancellotti viria para Blumenau e também celebraria uma missa na Cozinha Bom Pastor.
Dias depois, a missa foi cancelada. Os boatos? De que seria pressão por parte – pasmem – de possíveis ou já doadores do projeto que auxilia pessoas em situação de rua ou de vulnerabilidade social. O motivo da pressão? Comentários que se levantavam contra a presença do Júlio, chamando-o de “comunista”.
E essa é uma contradição que não pode passar despercebida: a mesma comunidade que acolhe e alimenta pessoas em situação de rua, que partilha arroz, feijão e cestas básicas, volta atrás quando alguém — justamente alguém que há décadas doa sua vida a essa população — vem dizer que essas pessoas também têm direitos, que não basta alimentar, é preciso também transformar as estruturas que geram fome e exclusão. Já dizia Dom Helder Câmara: “Quando dou comida aos pobres, me chamam de santo; quando pergunto por que eles são pobres, me chamam de comunista.”
Fico imaginando e convoco os leitores a pensar e imaginar como seria nossa vida se todos aqueles que se dizem cristãos servissem de exemplo, sendo tolerantes com as diferenças presentes entre nós e de fato comprometidos com o bem comum.
Pois bem, mas, para além das contradições encontradas nas pessoas que destilaram ódio ao Júlio nas redes sociais e que se dizem cristãs e pessoas de “bem”, queria escancarar a importância daqueles e daquelas que acreditam em figuras como o Júlio e que também querem ter seu direito a crer sendo respeitados.
Não se trata apenas de cancelar uma missa, mas de negar o direito da comunidade de celebrar sua fé junto a um padre que é referência de luta, coragem e espiritualidade para tantas pessoas no Brasil inteiro e também em Blumenau. Desde que a missa foi cancelada, recebi inúmeras mensagens de jovens, mulheres e homens que querem a possibilidade de ouvir padre Júlio para além do diálogo que estamos dispostos a fazer dentro da universidade, com a evidente referência do seu trabalho em São Paulo, que querem ouvi-lo também a partir do testemunho da vida que ele carrega e traz. Queremos rezar com ele. Esse é o desejo. Não podemos aceitar que a dimensão espiritual seja calada.
Bell Hooks, em seu livro “Tudo sobre o amor”, diz que “cada um deve escolher a prática espiritual que mais contribui para sua vida. É por isso que as pessoas progressistas em busca da verdade nos convocam a sermos todos tolerantes – a lembrar que, embora nossos caminhos sejam muitos, somos uma comunidade de amor”.
Não se trata de defender uma figura isolada somente, mas sim a liberdade de vivermos nossa fé a partir daquilo em que acreditamos: a justiça social, a dignidade de todos e todas, o compromisso com os mais pobres. Por óbvio, todos nós, desse campo, temos um grande carinho por Júlio, mas aqui preciso lembrar a sabedoria das senhorinhas que sempre observei sustentarem nossas capelas ao longo da história: “o padre vem e vai, mas a comunidade fica”. Sempre se ensinou que o centro não era o padre, mas a celebração, a vivência da fé no coletivo. E, neste caso, a celebração foi impedida de acontecer justamente por pressões externas, por medo de uma espiritualidade que não se fecha no privado, mas ousa falar de direitos, de dignidade, de vida em abundância para todos.
E o que foi negado aqui não é só a presença de um padre, mas o direito de vivermos a nossa espiritualidade a partir daquilo que acreditamos. Uma prática espiritual que nos ajuda a superar o sentimento de isolamento. Num país em que religiões tradicionais e as tais espiritualidades new age são garantidas e reconhecidas, por que não se pode também ter o direito de celebrar a nossa fé com um padre que encarna a opção pelos pobres?
O que o padre Júlio representa é justamente o que tantas comunidades viveram no passado e que hoje se esvazia: o senso de coletividade. Antes, a fé não era apenas uma busca por cura individual ou de sucesso e prosperidade, mas um movimento de construção comum, de partilha, de compromisso comunitário. É essa espiritualidade que acreditamos, é essa igreja que queremos viver.
E é isso que não podem tirar de nós.
Ao Júlio, queremos te dizer que os abraços estão te esperando e que há braços para tudo aquilo que tu defendes e acreditas que é a mensagem do Evangelho. Conte conosco.
Camila Gonzaga, ativista dos Direitos Humanos, formada em Serviço Social e conselheira tutelar em exercício





Parabéns pela reflexão!!!
Ótima reflexão Camila, o Padre Júlio Lancellotti é um Ser gigante, humanitário, acolhedor, merece todo nosso carinho e acolhimento
Acrescentando, um humano que luta quase, que sozinho na igreja contra a aporofobia (fobia das pessoas à pobreza). Esse é um verdadeiro Cristão.
Sou blumenauense. Moro fora, mas o coração ❤️ aí está. Viramos blumeNAZI. MUITO TRISTE!
Bela reflexão.
Padre Júlio Lancelotti é um ser exemplar. O evangelho sendo vivido na essência. Se Jesus hoje estivesse vivo entre nós (aliás já o teriam eliminado) pregando a palavra, já teria sido fuzilado por uma parcela considerável de “cristãos/católicos”, pelo seu viés “comunista” e “agitador”.
Excelente e necessária reflexão! Também fiquei muito triste ao saber que não teremos a celebração de uma missa com o estimado Pe. Julio Lancelotti, um dos mais fiéis seguidores de Cristo na história deste país.