Opinião | Três lados sobre a barragem e os Xokleng

Foto: Rosana Bonetti/Arquivo Pessoal

Este é um trabalho de conclusão de curso de jornalismo da FURB pelo então acadêmico Odair José da Silva, orientado pela professora doutora Rosemeri Laurindo, agora transformado em Artigo. Odair é natural de José Boiteux e, portanto, conhece bem a região, que neste final de semana viveu mais um capítulo de tensão, com forças policiais usando a força contra indígenas para operar a barragem norte. 

É longo, mas vale a pena para tentar entender um pouco mais do que acontece na área.

Passamos pela 96ª enchente de Blumenau desde a fundação da cidade, de acordo com registro dos picos das cheias feito pela Secretaria de Defesa Civil do município. Tanta experiência torna os serviços públicos e cidadãos experts em informação sobre a relação entre chuva, aumento do nível do rio e extravasamento das águas para as ruas, inclusive com simulador virtual. Todavia, é chocante saber que tanto conhecimento não se aplica para compreendermos o drama dos indígenas. O caso da barragem Norte em José Boiteux reflete em Santa Catarina a violência das soluções burocráticas usadas para atender demandas de quem tem mais dinheiro.

Ao final de mais uma enchente, ouvimos comentários injustos sobre indígenas que se desesperaram ao lado da barragem.  A história precisa ser recontada, sob risco de as novas gerações acreditarem penas em versões viciadas na parcialidade. Pior, engrossando o danoso movimento de polarização de opiniões, alimentadas por redes sociais que se embrenham em suposto interesse da direita versus esquerda. São poucos os que buscam equilíbrio entre todos os lados de uma questão. Fazer propaganda é sempre mais fácil. Por isso foi um alento quando recebemos, alguns anos atrás, no então recém-criado curso de Jornalismo da Universidade Regional de Blumenau (Furb) o estudante Odair José da Silva, natural de José Boiteux, que propôs abordar em seu Trabalho de Conclusão uma das maiores
polêmicas de sua cidade natal.

Como é um tema que pauta as decisões e conversas desse outubro de 2023, propus a Odair transformar sua monografia de 2018 em um artigo que possa ajudar a contextualizar assunto tão mal falado, na expectativa de compartilhar estudo acadêmico com público mais amplo. O texto a seguir é uma síntese da problemática que vai um pouco além do que apenas os últimos vinte anos, conforme ouviu-se falar por esses dias. E convida os produtores de conteúdo informativo à reflexão.

MENTALIDADE QUE SE CONSTROI COM (DES)INFORMAÇÕES

O estudo original teve como objetivo verificar como a população da Terra Indígena Xokleng Laklãnõ, no Alto Vale do Itajaí, era retratada pela imprensa, em matérias relacionadas a episódios que envolvem a Barragem Norte. Percorreu-se a história desde a colonização do estado até a criação da estrutura de contenção de cheias no município catarinense de José Boiteux. Chega-se à conclusão de que o mais influente jornal da região noticiou os fatos priorizando versão simpática a seu público alvo, a população branca e letrada da região à jusante da represa.
A Barragem Norte é a maior estrutura de contenção de cheias de Santa Catarina, erguida próxima a terra indígena e trouxe impactos sociais, culturais e ambientais àquela região, cujas abordagens jornalísticas lembram do assunto principalmente quando há algum conflito.

Não é de hoje que os indígenas sofrem com uma série de fatores externos a sua cultura. Durante o desenvolvimento do Brasil, muitas etnias foram dizimadas por diversas causas, a se destacar a luta por terras. Em Santa Catarina os Xokleng, juntamente com os Guarani, Kaingang e os Carijó, formavam as principais etnias. Depois de muita tragédia e genocídios, os nativos foram concentrados em áreas chamadas inicialmente de postos indígenas, dentre os quais o do Vale do Itajaí.

Essa mesma região tem um histórico de enchentes. Segundo dados da Defesa Civil da cidade de Blumenau, 96 cheias assolaram o município, além de deslizamentos e desmoronamentos ocasionados pelo solo encharcado. Por isso há meio século foi planejado um pacote de obras para reduzir o número de atingidos já que a ocupação das cidades baixas sempre aumentou. Foi assim que surgiu no início da década de 70, a Barragem Norte, em José Boiteux, distante pouco mais de 95 km de Blumenau.

A barragem situa-se no canal do rio Hercílio, com cerca de 45 km entre a Barragem Norte até congruência com o rio Itajaí do Norte, com largura média variando de 50 a 150 metros, passando pelos municípios de José Boiteux, Presidente Getúlio e Ibirama.

Nunca é demais lembrar que após a independência do Brasil a imigração foi incentivada para a colonização de grandes áreas, como as terras catarinenses. Promoveu-se a vinda sobretudo de imigrantes da Itália e da Alemanha, devido às crises na Europa depois da Revolução Industrial. O ano de1824 marcou um novo tempo de imigração catarinense e a colonização deu início aos conflitos entre imigrantes e nativos, com consequências até os dias atuais. Indígenas que eram nômades se viram acuados, forçados a se fixar, além de serem acometido por doenças
desconhecidas.

Com o passar do tempo a cultura indígena passou a ser vista como negativa (ou folclórica)  para alguns “brasileiros” com visão estigmatizada dos povos originários, o que pode ser conferido nos meios de comunicação. Pouco se contextualiza quanto à disputa de terras para instalação do colonizador europeu no Vale do Itajaí, em pleno século XIX e começo do século XX na hora de decisões como da Barragem Norte. Nativos foram enxotados como animais, mesmo centenas de anos após a chegada dos portugueses, graças aos acordos governamentais com as companhias
colonizadoras.

Em relação às leis, a Constituição mencionou os indígenas só em 1934 mas apenas na Constituição Federal de 1988 são devidamente reconhecidos.

A CRIAÇÃO DA TERRA INDÍGENA XOKLENG LAKLÃNÕ

Posto Indígena Duque de Caxias, Reserva Indígena de Ibirama, Terra Indígena La-Klãnõ ou Ibirama, foram as nomeações já dadas à região em questão. Fala-se também em Terra Indígena Xokleng Laklãnõ ou o contrário. Judicialmente trata-se de Reserva Indígena Duque de Caxias, estendendo-se aos municípios de José Boiteux, Vitor Meireles, Doutor Pedrinho e Itaiópolis. Embora contemple diferentes etnias como os Xokleng, Kaingang e Guarani, os Xokleng são maioria; na área todos se autodenominam Xokleng Lakãnõ.

O antropólogo Silvio Coelho dos Santos escreveu que a área destinada para garantir a sobrevivência dos indígenas foi efetivada em 1926, apesar dos contatos terem ocorrido desde 1914. Contudo, somente em 1965 um acordo entre o governo e o Serviço de Proteção ao Índio foi realizado, delimitando 14.500 hectares de área para os Xokleng. Dez anos depois, período em que a barragem já estava sendo construída, percebeu-se que cerca de dois terços das águas de contenção da estrutura ficavam dentro da terra indígena, isso resultou na perda de quase 900 hectares (conforme Coelho dos Santos no livro Nova história de Santa Catarina, editado pela UFSC em 2004), sem contar os impactos das margens.

No livro “Vale dos Índios, Vale dos Imigrantes”, os pesquisadores Nilson Fraga e Maria Krieger Goulart lembram os indígenas outrora nômades foram levados ao sedentarismo, fixando-se na região com alteração de seus hábitos alimentares e modos de trabalho com a terra. Os governos realocaram para a mesma área cafuzos do Contestado, gerando tensão e realocações em José Boiteux, com mudanças de costumes básicos de sobrevivência para as pessoas.
Em setembro de 1914 foi criada a Reserva Indígena Duque de Caxias, hoje chamada de Terra Indígena Xokleng Laklãnõ. Desde o início com aberturas de estradas, extração de madeiras, transformando radicalmente a cultura indígena.

Silvio Coelho dos Santos conta que a partir de 1954 terras foram arrendadas, brancos exploravam recursos naturais, como a madeira; roças e plantações foram surgindo e em muitas delas o índio serviu como mão de obra. Tudo isso feito sob os olhos dos novos encarregados da terra que a partir de 1969 passou para Posto Indígena Ibirama. A mudança na organização social marginalizou os Xokleng.

A CONSTRUÇÃO DA BARRAGEM NORTE

A construção da Barragem Norte no município de José Boiteux insere-se em um cenário de enchentes recorrentes em que se encontra o Vale do Itajaí. As cheias são registradas desde 1852, com a marca de 16 metros e 30 centímetros de elevação do rio Itajaí Açu em Blumenau, no dia 29 de outubro daquele ano. Desde então já se seguiram 96 enchentes, incluída a de 2023 com a marca de 10 metros e 19 centímetros, no dia 9 de outubro. A mais alta de todas foi em1880 (com 17 metros e 10 centímeros). De lá para cá a população urbana cresceu em áreas alagáveis.
Pouco mais de cem anos depois do primeiro registro de cheias em Blumenau, a cidade já tinha mais de 100 mil pessoas atingidas em 1983, com quatro ocorrências nos meses de março (10 metros e 60), maio (12,52), julho (15,34) e setembro (11,75), ano anterior da criação da Oktoberfest.

É no cenário de urbanidades atingidas pelas cheias que as barragens aparecem. A primeira pronta em 1973, a Barragem Oeste. A segunda em 1976 (Barragem Sul) e a Barragem Norte, planejada desde a década de 1970, foi finalizada em setembro de 1992.

Vale citar trecho de um artigo científico que circulou nas redes sociais de moradores José Boiteux no último fim de semana devido aos alardes devido às chuvas de outubro de 2023. Explica tecnicamente a estrutura da Barragem Norte, para simular rompimentos:

“A Barragem Norte, se localiza no município de José Boiteux, no Alto Vale do Itajaí. É a maior obra de controle de cheia realizada até hoje na bacia hidrográfica do rio Itajaí, com capacidade para armazenar 357×106 m3 de água até a crista do vertedor. A estrutura é do tipo enrocamento, possui cinco descarregadores de fundo: dois deles (tulipas) controláveis por comportas e três não controláveis (células). Devido as suas características técnicas, seu estado de conservação e sua inconformidade com o exigido na legislação vigente, lei nº 12.334 de 2010 e resolução do CNRH, nº 143 de 2012, a barragem em questão pode ser classificada de ALTO RISCO.” (KRAMBECK e TSCHOKE, 2018, p.4)

O pesquisador Nilson César Fraga (2002) fala em “indústria das enchentes” ao escrever sobre as enchentes no Vale do Itajaí-Açu. Lembra-se da exploração da tragédia por políticos para conquistar votos e buscar sucesso em eleições.  Entretanto, o autor observa que a população não apontava interesse por obras estruturais, mas sim por soluções. Aí entra a função da imprensa, que ajudou a cristalizar a ideia das obras estruturais. O autor ainda destaca que era muito difícil os veículos de comunicação falarem em algo diferente, como a readequação urbana.  Ele conclui que as enchentes no Vale são motivadas pela natureza e as consequências pela interferência humana.

A Barragem Norte está localizada em José Boiteux, localizado no Alto Vale do Itajaí. O município fazia parte de Blumenau até 1934, quando Ibirama foi desmembrado. José Boiteux foi emancipado em 1989.

A estrutura de contenção de cheias está localizada mais especificamente na localidade boitense de Barra Dollmann, próxima à Terra Indígena Xokleng Laklãnõ. Por isso, o lago de contenção acaba afetando os indígenas à montante, ou seja, antes da barragem. Desde antes da construção, a região era habitada pelas etnias Xokleng, Kaingang e Guarani.

O responsável pela obra na época era o Departamento Nacional de Obras e Saneamento (DNOS). A estrutura foi instalada no Rio Hercílio, ou do Norte como também é conhecido, com 58 metros de altura de barramento e ficou pronta em 1992. A Barragem Norte influencia no nível do rio em todas as cidades à jusante, ou seja, abaixo dela. Possibilita diminuição de dois metros no nível do rio, quando enchentes atingem de 10 a 15 metros acima do normal. Todavia, o antropólogo Silvio Coelho dos Santos alertou que desde o início, antes até do começo da obra, o planejamento da construção da barragem foi incorreto, sem licença de operação e tampouco relatório de impacto ambiental, o que os documentos oficiais atestam.

Várias empresas fizeram parte da construção. A obra ficou marcada pela demora na entrega, pelas frequentes pausas nos trabalhos causadas pela falta de recursos e mudanças no projeto. A previsão era de que terminasse em 1986, mas sabe-se que isso não aconteceu. Foi até mesmo “inaugurada” em 1990, sem estar pronta e nem funcionar. Isso ocorreu por interesses políticos à época. A situação complicou pois o então presidente Fernando Collor de Melo extinguiu o DNOS, passando a responsabilidade para o Ministério da Irrigação.

Mesmo antes de estar pronta, a barragem transtornou a população da região. Durante a construção, uma ensecadeira, que permitia o trabalho de funcionários, acabou rompendo e levou desespero para o povo de José Boiteux e cidades próximas, em 1980. Após dias de chuva, a estrutura começou a ceder e toda a água retida era despejada no rio.

Às três horas daquela tarde, percebendo que os túneis não conseguiriam escoar o grande volume d’água que descia o rio, os responsáveis pela construção enviaram caminhões na direção de José Boiteux, acionando a população ribeirinha a abandonar suas casas, pois a ‘barragem’ estava rompendo. Os caminhões, buzinando, causaram pânico generalizado na região; as pessoas abandonavam tudo e corriam para os morros, para salvar suas vidas (FRAGA, 2005, p. 195).

Além de José Boiteux, que teve pontes arrancadas, Ibirama teve sua região central inundada e Presidente Getúlio também acabou sendo atingida. Essas cidades tiveram a maior enchente de suas histórias. O canteiro de obras tornou-se um “campo de refugiados” (FRAGA, 2005, p. 195). À época, somente em Ibirama, os prejuízos alcançaram os 100 milhões de cruzeiros. A segurança das obras e inclusive da futura barragem foi questionada. Tal fato só ajudou a aumentar a demora na entrega, pois os trabalhos novamente paralisaram. Somente em outubro de 1992 a Barragem Norte é entregue à comunidade em funcionamento, para tentar proteger o vale das enchentes.

OS TRÊS LADOS DA BARRAGEM NORTE NA IMPRENSA

Em 1978 ocorreu uma grande cheia na região da barragem, com perda agrícola e de casas indígenas. A partir deste ano começaram as reinvindicações junto à Funai e também ao departamento responsável pela obra. Lá se vão 45 anos.

Apesar de Silvio Coelho dos Santos ter feito o alerta nos anos 90, em publicações de referência, não mudou a sina dos Xokleng em 2023.  Autoridades chegam a ir até o local para conversações, mas os indígenas esperam pelo cumprimento de promessas e, assim, repetem a ocupação da barragem em forma de protesto.

Em entrevista para o presente trabalho, em 2018, o agricultor Eriberto Moser, que mora próximo da estrutura, afirma que a represa prejudicou a localidade, pois as áreas que atualmente são alagadas eram propícias para plantações. Além disso, também acirrou a disputa por terras. O agricultor ressalta que indígenas já chegaram a invadir sua propriedade, afirmando que o terreno pertencia a eles.

Hoje a terra indígena possui uma área de pouco mais de 14 mil hectares, sendo 900 atingidos pelo lago de contenção e o que ficou nas margens do rio Hercílio teve que ser abandonado, com perda de 90% das terras agricultáveis. Sem contar as benfeitorias atingidas.

De acordo com o indígena Elpidio Priprá, com a barragem o rio passou por um processo parecido com o de assoreamento, o que dificulta a pesca. Além disso, segundo ele, as terras em que os Xokleng estão atualmente são muito pedregosas, impossibilitando o plantio. Priprá informou que há um processo para que a área da terra indígena passe dos atuais 14 mil hectares, para 37 mil.

Em 1991, pouco tempo antes da entrega da barragem, os indígenas fizeram manifesto ocupando o canteiro de obras. Por lá ficaram mais de um ano e só saíram após algumas promessas, nunca cumpridas, como construção de casas, escola, igreja, instalação de rede de abastecimento de água, melhorias em estradas e pontes e remoção das famílias.
Hoje existem oito aldeias espalhadas por toda a terra indígena, conta Elpidio Priprá, em entrevista concedida em José Boiteux no dia 11 de novembro 2018. Os Xokleng foram obrigados a se deslocar para terras mais altas, dividindo-se. Outros povos, como os afrodescentes, cafuzos que também tinham ido viver naquele local após deslocamentos, foram realocados no município. A Barragem Norte promoveu uma verdadeira reorganização do povo Xokleng Laklãnõ.

Segundo Fusinato (2007) as reivindicações, principalmente por parte dos indígenas, ficavam cada vez mais acentuadas a cada inundação da barragem. Entraram em conflito com colonos, para serem indenizados. Em 2005 os indígenas destruíram a casa de máquinas da barragem, após pedirem que o vigia se retirasse. Naquela época o Deinfra, órgão responsável pelo funcionamento da estrutura, tinha a estimativa de que o equipamento depredado custasse cerca de 20 mil reais. Os Xokleng reivindicavam cumprimento das promessas firmadas no protocolo de intenções de 1992, ano da inauguração.

Além dos indígenas, colonos ficaram em situação complicada pois compraram terras pensando que tudo estava regular, sem terem sido alertados sobre a construção da barragem. Helm (2003) afirma que diante do grande conflito de interesses, mostra-se necessário ouvir os povos quando há a vontade de implantar projetos em áreas indígenas e que podem gerar impactos humanos.

A escolha de notícias sobre os Xokleng com relação à Barragem Norte deu-se após pesquisa em textos, relatos e documentos oficiais. Foram selecionados eventos desde 1978, quando houve uma enchente e os indígenas foram até os órgãos em busca de respostas, percorrendo-se até 2016, quando houve manifestações, perfazendo um período de quase 40 anos. Escolheu-se o Jornal de Santa Catarina, por ter maior circulação na região impactada. Foram selecionadas 450 edições, à época ainda impressas. Por fim, destaca-se e analisa-se 13 matérias que abordaram objetivamente os Xokleng e a Barragem Norte no intervalo de sete anos (1990, 1992, 1998, 2001, 2005, 2015 e 2016). Um período datado, mas cujo conteúdo discursivo não se diferencia muito do que se viu manifestado nos portais informativos nesta enchente de 2023, quanto ao olhar sobre os indígenas.

Foram repassadas todas edições dos meses e anos selecionados. As matérias e respectivas capas foram fotografadas. Pelo conteúdo encontrado, classificou-se do seguinte modo: a) conflitos com os Xokleng; b) manifestos na Barragem Norte; c) problemas com enchente.

Cada matéria deu origem a um resumo que foi enquadrado em uma das três opções: Lado dos Xokleng, Lados dos Brancos e Neutro. Estas classes surgiram com o objetivo de analisar a abordagem jornalística, o que colabora no entendimento do ofício na imprensa e aprofunda a compreensão crítica sobre o que é veiculado.

No Jornal de Santa Catarina as matérias então analisadas foram aquelas ligadas aos Xokleng, à Barragem Norte e às enchentes. Chegou-se a 13 edições que envolviam esses assuntos. Deste modo, a categorização abaixo foi iniciada a partir da primeira matéria, no ano de 1990. Ressalta-se que em 2014, no mês selecionado para o levantamento, o Arquivo Histórico José Ferreira da Silva não possuía todas as 30 edições do veículo, mas apenas 15, deixando essa lacuna. Além disso, do dia 7 ao dia 14 de julho de 1983, devido à grande enchente naquela ocasião, o Jornal de Santa Catarina não chegou a ser veiculado.

Resumindo, foram analisadas as matérias publicadas no período considerado que abordaram assunto na intersecção das categorias a) conflitos com os Xokleng, b) manifestos na Barragem Norte e c) enchente que atinge os indígenas.
Das 13 publicações encontradas no Jornal de Santa Catarina que abordavam a relação entre os Xokleng e a Barragem Norte, oito, ou seja, mais da metade, está diretamente relacionada aos manifestos indígenas na estrutura de contenção de cheias. Outras quatro possuem como assunto principal ações decorrentes da barragem, sem ligação direta à ocupação. Uma única publicação fez menção ao índio como vítima das enchentes.

Dez matérias ganharam a capa do Jornal de Santa Catarina. Cinco foram pequenas chamadas e as outras cinco como principais manchetes e grandes fotos, as quais pertencem à categoria Manifestos na Barragem Norte; quatro pertencem a outros conflitos com os Xokleng e uma matéria sobre os problemas com a enchente. A primeira matéria a mencionar o indígena e sua ligação à barragem é no ano 1990. Antes disso, período do planejamento e construção, os nativos sequer são lembrados.

Termos como “invadem”, “depredam”, “ameaçada” e “reféns” são destaques nas matérias recorrentes. O indígena é tratado como sujeito causador de ações, rebelde, ameaçador, o que reforça ideia negativa, intensificando estigmas. É evidente o padrão de negatividade.  Apenas a publicação datada do dia 1º de outubro de 2015 não teve conotação negativa ao mencionar a busca de solução para o impasse.

Outra observação a salientar-se é que nos meses levantados em que ocorreram grandes enchentes, como julho de 1983 e novembro de 2008, nenhuma matéria envolvendo a correlação considerada foi encontrada.

Diante do contexto, as reportagens foram classificadas de acordo com posicionamentos discursivos. Para o presente texto, publicado no Informe Blumenau, adaptou-se o método usado na publicação original da pesquisa acadêmica realizada (com mais de 60 páginas), para a seguinte classificação: 1) lado dos brancos, 2) lado dos Xokleng, 3)
neutro.

A análise considerou valores-notícia amplamente estudados em Teorias do Jornalismo. Também se assinala as fontes jornalísticas (SCHMITZ, 2011) de acordo com suas categorias, grupos, ações, crédito e qualificação. Foi possível fazer, então, o enquadramento conteudístico. Resumindo: o lado dos brancos destaca-se quando são reforçados os valores-notícia que abordam o índio de uma forma negativa; o lado dos Xokleng quando eles são citados como vítimas e neutro quando há valorização de dois ou mais lados.

LADO DOS BRANCOS:

(21/06/1990) Índios invadem casas no canteiro de obras da barragem e afirmam que só vão sair após o cumprimento de promessas.

(23/06/1990) Casas do canteiro de obras permanecem ocupadas pelos indígenas, mas empreiteira busca por medidas cabíveis.

(29/06/1990) Cacique afirma que índios não deixarão casas do canteiro de obras. Eles aguardam cumprimento de promessas após a conclusão da barragem.

(20 e 21/09/1992) Caso construção de moradias não comece, índios ameaçam ocupar barragem.

(11 e 12/10/1992) Após nenhum sinal de melhorias para reserva, indígenas ameaçam ocupar novamente barragem.

(7/03/2005) Barragem é depredada por indígenas que esperam que o protocolo de intenções com várias promessas seja cumprido.

LADO DOS XOKLENG: nenhuma

NEUTRA:

(8/11/2001) Barragem é ocupada após negociações não andarem. Os índios aguardam cumprimento de acordo.

(4/03/2005) Ainda ocupando a barragem, indígenas ameaçam depredar estrutura se protocolo não for cumprido.

Das oito matérias sobre manifestos na Barragem Norte, seis foram posicionadas pela perspectiva do lado dos brancos. As outras duas, apesar de alguns aspectos que ainda realçam a imagem rebelde e ameaçadora dos Xokleng, apresentam formação discursiva mais neutra.

Na sequência, repassando-se todas as edições que mencionam ações indígenas sem relação com a barragem, destacam-se demais matérias que enfatizam conflitos envolvendo aquela população:

LADO DOS BRANCOS:

(21/07/1998) Caminhões com madeiras retiradas pelos índios são apreendidos; eles afirmam que é para sobrevivência, fecham rodovia e fazem reféns.

(19/10/2016) Índios fazem colonos reféns e fecham estradas após disputas por terras.

(20/10/2016) Índios soltam reféns e liberam passagem por vias após atrito gerado por disputa por terras.

LADO DOS XOKLENG: nenhuma

NEUTRA:

(22/07/1998) Índios soltam PMs reféns após liberação de cargas de madeira.

Três matérias foram enquadradas ao lado dos brancos e apenas uma em neutra. Elas possuem como assunto principal ações decorrentes da barragem, embora sem ocupação da obra.

Apenas com foco na enchente e consequências na vida indígena, só uma reportagem ganhou destaque em todos os anos:

LADO DOS XOKLENG:

(1º/10/2015) Índios sofrem com alagamentos causados pela barragem e acampam sobre a estrutura esperando por respostas.

A publicação foi capa do Santa com a manchete “Incerteza no olhar” e foto com duas crianças. A questão da ocupação foi dada como contexto, como causa dos impactos da represa sobre os indígenas. A imagem dada ao público por esta publicação é de que os Xokleng são vítimas da Barragem Norte e das enchentes, como qualquer pessoa do Vale do Itajaí, ou seja, diferentemente das outras matérias que noticiam unicamente o fato da ocupação e de que as vítimas moram nas cidades mais abaixo.

REFLEXÕES SOBRE A ANÁLISE

Com o objetivo de verificar como os índios Xokleng, da Terra Indígena Xokleng Laklãnõ, no Alto Vale do Itajaí, foram retratados pela imprensa escrita de referência em Santa Catarina para a região, nos episódios que envolviam a Barragem Norte, o texto expõe resultados que confirmam a preponderância de abordagens desfavoráveis aos indígenas, no período selecionado.

O artigo pretende contribuir para entendermos os processos que estigmatizam os indígenas, novamente julgados por suas ações na Barragem Norte, em 2023. Com aporte metodológico em fontes jornalísticas, realizou-se análise de conteúdo de notícias relativas aos anos de 1990, 1992, 1998, 2001, 2005, 2015 e 2016 para a correlação entre Xokleng e Barragem Norte.

Os Xokleng aparecerem durante os diferentes anos no Jornal de Santa Catarina por terem usado a força, violência, quando ligados à Barragem Norte. O veículo noticiou o drama que chamava a atenção, priorizando as necessidades dos brancos que formavam seu público leitor/consumidor. O Santa, na maioria das vezes, retratou os Xokleng como causadores de problemas, ignorando os processos históricos e nem contextualizações importantes.

Quando o assunto são as enchentes, o foco é quase que totalmente na vitimização do povo branco, à jusante da Barragem Norte. Os Xokleng hoje são comparados em números com a população bem maior da cidade, como se essa quantificação não fosse fruto de um outro processo violento amparado pelo Estado de outrora, quando os números eram inversos. Uma dívida impagável de um passado não muito distante, mas cuja reflexão poderia ao menos realinhar os pensamentos e atitudes de hoje.

Esta pesquisa ajuda a compreender abordagens na imprensa de referência de Santa Catarina. Os valores notícia são direcionados a consumidores da mercadoria notícia, que normalmente são os brancos, letrados. Indígenas não estão enquadrados como consumidores da informação, que merecem respeito ao posicionamento que defendem. Assim, o noticiário sobre Xokleng e Barragem Norte não cumpriu ampla função informativa, mas sim atendeu interesses de consumidores no contexto estritamente mercadológico de um produto que tem um target, e não se abre ao público amplo, diverso e plural da sociedade.

Odair José da Silva e Roseméri Laurindo, jornalista

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