Opinião | Os balaios de bambu de meu avô

Foto: divulgação

Finais de semana de frio, garoa e cobertas fazem voltar o cheiro bom de bolinho de chuva na cozinha. Desculpe-me se trago lembranças! Quando o dia lá fora está assim, choroso, não consigo desviar dos pensamentos que vou tropeçando. Cada um dos mimos que mamãe, titia e vovó produziam para mim, quando criança, bem que podiam estar na mesa hoje. Transformariam em doce a realidade de refletir sobre os acontecimentos da semana. Prometo ser breve!

Como boa parte dos brasileiros, também não conheço por completo minha árvore genealógica. Pode ser que formamos uma família de etíopes, indígenas, um europeu lascado. Nada é certo! Talvez tudo isso misturado. O que sei é, ao olhar no espelho, que o retrovisor não aponta uma direção. Faltam registros, parece que esqueceram de pessoas como nós dos livros de história. Arriscaria dizer, julgando apenas o sobrenome que carrego, que o caminho dos meus – antes de mim –, foi uma estrada dura, de servidão e obediência. Deve ser assim também para todos aqueles que contam com alguma preposição de subordinação depois do nome.

Eu cresci na serra catarinense e tenho muito nítida a lembrança de meu avô materno montando balaios artesanais com fitas de bambu. Sabe aqueles cestos que os indígenas vendem por ai? Exatamente igual a estes! O velho Ezídio nunca foi a escola, mas sabia ler, fazer contas. A arte que ele produzia, possivelmente, foi transmitida por algum Tupi Guarani Kaigang, que originalmente habitava Boicana do Sul antes da invasão do Brasil. Como o cultivo de abelhas e extração de mel, que ele gastava dedicação. Infelizmente, nestes dias de meninice, não fui tão atencioso para aprender com ele sobre os que viveram antes de nós.

“Olhe sempre para frente, mas nunca esqueça o passado”. Parece que atualmente a sociedade pegou um gosto de praticar o inverso do que propõe o a sabedoria popular. A ideia de marco temporal para terras indígenas é uma aberração que, em poucas décadas, estou convencido, causará profunda vergonha nos defensores da proposta. A aprovação de um projeto de lei sobre o tema não será uma derrota do governo Lula, como também não foi a aprovação da Lei da Mata Atlântica. Perderemos todos: nas florestas, nos campos, nas cidades, oposição, governo e sociedade. É um erro bisonho retroceder, afrouxar a proteção ao meio ambiente e povos originários.

O brutal atraso que caímos nesta época estranha cobrará uma conta alta para os que vem depois. Me parece evidente que, não faltam informações atualmente, é deplorável o coração daqueles que cometem atrocidades de racismo – como o sujeito amarrado, torturado nesta semana -, que age contra a natureza. Todos sabem que o melhor é praticar a empatia, a solidariedade. Podem encontrar outro motivo de justificativa para as barbaridades contra o humano. O desconhecimento que o errado é errado, atualmente, não cola mais.
É impossível conter o tempo, desnudado, neste tempo. Os arrepios de inverno, das ideais, o silêncio assustador de dias sem cor no céu, entregam uns negócios do intimo que estavam quase largados, esquecidos. Como diz aquela música do Chico Buarque, “gravei na
memória, mas perdi a senha. Misturam-se os fatos, as fotos são velhas”.

Recordar com os lábios, agora, é sentir o escorrer, por um cantinho da boca, o velho açúcar farelento, de cristais fininhos e barulhentos, quebrando depois da mordida. O aroma de café passado – inconfundivelmente servido em um copo de vidro, destes que sobram de extrato de tomate -, aquece o coração de coisas fabulosas que a vida mandou, tungada com pedaços de biscoitos.

Lá fora o dia parece chorar. Nesta hora já não sei mais se o clima é feito lembranças ou desesperanças do que pode o futuro, com tristeza, aguardar. Como é amargo o que traz para mim um doce bolinho de chuva.

Tarciso Souza, jornalista e empresário.

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