Opinião | O ventre como arena de batalha: reflexões sobre o 8 de março

Imagem gerada com IA

Se você retirasse do caminho todas as convicções religiosas, os dogmas, crenças construídas ao longo de séculos, é bem possível que as coisas por aqui, neste plano, seguiriam um fluxo menos conflituoso que este que o planeta vai enfrentando. Estou bem distante de pregar o fim da fé, da espiritualidade de cada um. Por favor, não entenda assim!

O que desejo expressar é que ao priorizar o intangível, muitas vezes acima de nós mesmos, em algumas circunstâncias, obscurecemos a generosidade inerente, a compreensão do básico, desfazemos de nossa própria humanidade e, ao olhar para o outro, não permitimos o vislumbrar de um semelhante, como reflexo, no espelho da própria alma… E, então, esprememos, torcemos e faz-se de tudo para impor as certezas, as respostas, nas mãos, na cabeça, no coração, no corpo inteiro do repreendido errante.

Em um país laico, como é o Brasil, nenhuma igreja, qualquer manifestação de fé, jamais poderia impor ou influenciar os rumos, as regras que regulam a sociedade. É para isso que existe o parlamento, que não é um altar e não deveria ser confundido com o púlpito. Infelizmente não é assim, e sobram pregações religiosas moldando leis e políticas públicas ao gosto, para o poder de quem lidera o templo.

Repito: este texto não é contra a fé, a religião ou a espiritualidade de ninguém. Minha reflexão está na influência destes no cotidiano coletivo. A história registra inúmeros retrocessos impostos por igrejas e filosofias de vida. As mulheres, especialmente, foram e são, no decorrer do tempo, as mais perseguidas e prejudicadas por dogmas da crença. Por exemplo, é na construção diária dentro de espaços religiosos, e não nas pesquisas, nas ciências, que a convicção sobre o direito ao útero da mulher se forma, ganhando debates na nação.

Em um dia que deveria ser marcado pela celebração da conquista de direitos e da luta por igualdade, o 8 de março se tornou o palco de uma batalha entre visões antagônicas. De um lado, a hipocrisia de homenagens vazias nas redes sociais por parte daqueles que, nos demais dias do ano, trabalham para cercear a liberdade e autonomia das mulheres. Do outro, a dura realidade de um país que tem nos feminicídios uma das suas estatísticas mais cruéis; que ignorando o drama emocional e as circunstâncias que acrescentam dificuldades para as mulheres; que faz da não-inclusão delas um duro obstáculo para a progresso de toda a sociedade.

Veja que curioso: a França fez desta semana um marco para os avanços e conquistas da autonomia corporal feminina, ao tornar o aborto constitucional. Diversos países também não consideram crime a decisão de retirar um feto. O Brasil, na contramão, insiste em punir e marginalizar as mulheres que decidem sobre seus próprios corpos.

Curiosamente, os mais histriônicos gritos contra o aborto legal parte dos liberais brasileiros. A criminalização do aborto, no entanto, não impede que ele aconteça, apenas o torna clandestino e perigoso, colocando em risco a vida e a saúde de milhares de mulheres.

Eu fico a imaginar o quanto deve ser difícil para elas tomarem uma decisão radial como esta. Elas que são violadas, muitas vezes por pessoas próximas; desrespeitadas e objetivadas. As tantas mulheres que são ignoradas em suas dores… será mesmo que o melhor caminho é enviar uma ex-gravida do hospital para o presídio? O fundamentalismo religioso, que se ergue como um guardião da moral, encontra mais paz de espírito em interferir no corpo de alguém e mandar para cadeia ao invés de acolher e tentar compreender daquele ato de liberdade?

É uma pena que o Dia Internacional da Mulher, para muitos, limita-se em distribuir flores, homenagens vazias e das hashtags bonitas. É preciso defender, construir, uma ampla autonomia feminina. Uma emancipação começa por libertar as decisões sobre o próprio corpo, mas, vai muito além, garantindo o acesso e destaque na sociedade em todas as áreas. Lamento que, talvez, a hipocrisia que permeia este nosso tempo não possibilite que a minha geração possa viver o suficiente para ver as mulheres, como minha esposa, mãe e irmã, realmente livres para tomar suas próprias decisões, sem a sombra da culpa, do julgamento ou da punição.

A luta pela igualdade de gênero não é apenas um problema das mulheres, mas de toda a sociedade. Ou deveria ser assim! Seria importante que este compromisso com a construção de um mundo mais justo, livre de opressão e discriminação contasse com a ajuda, a fé, o respeito e compreensão também de todas as religiões. Quem sabe, não plantamos neste tempo uma sementinha de igualdade entre homens e mulheres. Eu creio!

Tarciso Souza, jornalista e empresário

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