Opinião | O país onde político defende sertanejo milionário e perde a cabeça por causa de um par de chinelos

Imagem gerada com IA/Enviada pelo autor do artigo

Antes que venha o rótulo fácil: não sou isentão. Tenho lado, tenho consciência política e sei exatamente o quanto isso incomoda num país viciado em caricaturas. O que me espanta ou talvez nem tanto é ver político gravando vídeo indignado para defender cantor sertanejo milionário, sustentado por contratos generosos com prefeituras, dinheiro público escorrendo fácil enquanto o discurso posa de defesa da “liberdade artística”. Não é sobre arte, nunca foi. É sobre proteger a engrenagem que mistura palco, gabinete e verba pública sem constrangimento algum.

O roteiro é sempre o mesmo. Quando o dinheiro público banca o próprio campo, vira valorização cultural; quando alguém questiona, vira censura. A indignação é seletiva, o discurso é ensaiado e a câmera ligada faz o resto. O sertanejo vira símbolo de perseguição, o político vira herói de ocasião e o contribuinte segue como figurante silencioso dessa ópera bufa financiada pelo Estado.

Nesse ambiente intoxicado, qualquer coisa vira conflito ideológico. Um comercial de Havaianas, baseado numa expressão popular brasileira, é tratado como ameaça comunista. Um chinelo vira manifesto político. Não importa a intenção, não importa o contexto: importa a narrativa que melhor rende engajamento. A experiência recente da marca escancarou o nível do delírio coletivo um país que transforma publicidade em guerra cultural porque já não consegue mais distinguir símbolo de realidade.

Ao mesmo tempo, alimenta-se o medo do cancelamento como ferramenta política. Cria-se a sensação de que todos estão sendo vigiados, que cada palavra errada será punida, que existe uma obrigação invisível de aderir a um vocabulário ou a um comportamento específico. Não existe lei, não existe imposição jurídica, não existe coerção formal. Existe histeria fabricada, usada para manter a militância em alerta permanente e o debate público em ruínas.

O resultado é um espaço onde ninguém discute ideias, apenas defende posições. Onde questionar dinheiro público vira ataque pessoal. Onde consumir um produto vira declaração ideológica. Onde político escolhe defender cantor milionário, mas se diz vítima quando confrontado por um par de chinelos. É o triunfo da performance sobre a política, do vídeo sobre o argumento, da gritaria sobre a responsabilidade.

No fim, não é sobre sertanejo, nem sobre Havaianas, nem sobre pronome algum. É sobre um país capturado por extremos que precisam transformar tudo em espetáculo para sobreviver. E quem se recusa a entrar nesse jogo quem tem lado, mas não aceita o delírio acaba sendo o verdadeiro incômodo. Porque consciência, hoje, assusta mais do que qualquer radicalismo.

Marco Antônio André, advogado e ativista de Direitos Humanos

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