Opinião: o inconsequente

Foto: Jorge Araújo/Folhapress/2018/Reprodução

Francamente, com toda a boa vontade com o presidente da República e respeito às pessoas honestas que o defendem, como é possível que o Brasil resolva seus problemas com um governo desses? É possível acreditar num País cujo governante e seus lambe-botas tratam a pandemia com tanta inconsequência, a agenda liberal de Guedes como uma lorota e o combate à corrupção com tamanha hipocrisia? Sinceramente não sei a resposta, mas uma coisa é certa: o instinto bélico e desconfiado do “líder” da Nação é a antítese do que o País precisa nessa hora e pra seguir o curso civilizatório, isto é: de razão, cooperação e confiança.

Era possível evitar o número de mortes pelo covid19. A queixa do presidente com o isolamento social até tem sentido, a eficácia tem sido incerta e o homem comum precisa trabalhar. Mas, cloroquina e ponto final seria risível, fosse apenas o engodo e não a tragédia. Então: estou maluco, ou a inconsequência será julgada. Ora, chamar o vírus de “gripezinha” que vitimaria “umas 800 pessoas”, somado à insensibilidade com os familiares dos mortos, à desconfiança à vacina (pra depois se ajoelhar aos chineses) e as ameaças a governadores, estão entre as causas reais do atraso da vacina e do colapso hospitalar. Causas que revelam os atos falhos de um desalmado e pior: pessoas poderiam ter sido salvas.

O que dizer então da crítica às máscaras, baseada numa enquete que o presidente tratou como um estudo científico e, ao faze-lo, desautoriza seu próprio governo, pois o Ministério da Saúde recomenda a máscara. Tá no Site!: gov.br/saude/pt-br/Coronavirus. Dá pra entender um homem desses? A Carta dos governadores, assinada inclusive por aliados como Ratinho Jr. (PR) e Ronaldo Caiado (GO), pede que o governo pare de “distorcer informações” e toca no ponto central do seu comportamento: a “criação do confronto” ao invés da “cooperação”  que se espera de um líder. Me envergonha que o pávido governador catarinense não esteja entre os signatários.

A agenda do ministro Paulo Guedes foi pro espaço e ninguém mais sabe o que ele ainda faz no governo. Seus principais indicados debandaram, porque têm mais o que fazer do que fazer de conta que implementavam a reforma proposta pelo candidato à presidência. Privatização? Nenhuma até agora. A reforma tributária, por exemplo, é tão inadiável quanto politicamente inviável. Estudo do Banco Mundial mostra que 2.600 horas são necessárias por ano no cumprimento das regras tributárias no Brasil, enquanto a média dos países desenvolvidos é de 120 hs (menos de 5%). Mas a reforma não sai e o governo não se explica.

Simplificação dos tributos e desoneração da folha tornaria o país confiável,  geraria investimentos e empregos. Era a promessa, já que os governos do PT se acomodaram nos superávits do agronegócio, quando chegamos à 8ª economia mundial. Hoje, somos a 12ª, com previsão de 14ª em 2021 (Austin/Rating, Informe Blumenau, 03/03/21). Mas a reforma afeta os bem pagos da burocracia patrimonialista, com quem o presidente, igualzinho aos outros, não mexe. Evidência disso é sua exigência de que a reforma administrativa só atinja futuros servidores, contrariando Guedes (Gazeta do Povo/Economia, 10/02/21). E a dívida só cresce, empobrecendo a próxima geração e afugentando cérebros.

E pra quem acreditou na Lava-jato, viu estupefato a saída de Sérgio Moro, o cara que, além de tudo, inteligentemente diminuiu os índices de homicídio no País. Quem diria? O paladino da justiça a serviço de um presidente que prometia acabar com a corrupção, mas que defenestra seu ministro da Justiça para proteger o filho ladrão do erário público. Deu certo, porque o STJ ignorou provas fartas da PF sobre esquema milionário de rachadinha, assessores fantasmas, incluindo cifras na conta da primeira dama. Moro se ferra, Queiroz se safa e o filho do presidente compra uma mansão no lago norte. Que desfecho! Vale à pena a vida de bandido: é a lição que fica. A pergunta é: por que ainda acreditar nesse “mito”?!

Francamente, o governo é uma farsa e precisa de factoides pra desviar o foco de seus erros e asneiras como o anticomunismo, a negação à doença, ataques  aos governadores etc. Abusa da guerra de narrativas produzidas por filhinhos de papai, inúteis anticomunistas de apartamento com sotaque de telenovela que nunca viram uma enxada, muito menos uma foice e um martelo. A Politologia  explica os governantes ineptos: criam inimigos e os culpam por tudo, escondendo a ingerência. É claro que, nesse vácuo de bom exemplo, o patrimonialismo do “centrão” deita e rola com a PEC da impunidade. Meu Deus, que gente! Que cultura! É Nelson Rodrigues na veia.

Reconheça-se que o presidente tem capital político e o apoio de parte da Sociedade, o suficiente pra sonhar com a reeleição – único interesse real. É paradoxalmente carismático, exercendo um fascínio quase incompreensível sobre seus defensores. Mas entendamos que este senhor tinha o atributo certo, na hora certa. Assim como Lula inspirou a compaixão diante da injustiça social, Bolsonaro inspirou a raiva ante de um País sem rumo. No segundo turno de 2018, era preciso ser petista de carteirinha, ou eleitor do Boulos, pra não votar no homem; ou totalmente cerebral, um artifício factível a muitos, mas contrário às eleições, onde, pela alegria ou pela ira, a emoção prevalece.

Todavia, a situação agora é outra. As principais características do presidente não ajudam o País, nem a ele, embora não faltarão narrativas e defensores a seu favor. Intuição e agressividade são bons atributos no campo de batalha das lutas sangrentas pela vida. Ao contrário, em situações dramáticas de calamidade, em que pessoas morrem por falta de leito hospitalar – inclusive em Santa Catarina, coisa inimaginável! – razão, altruísmo e ajuda mútua são os atributos das lideranças. Na política, que é a guerra por outros meios, esses meios   são regra e, em situações de calamidade, uma obrigação humanitária que só um egoísta inconsequente descumpre.

Nas democracias, são a astúcia da razão e a capacidade de agregar que determinam o bom governo. Por necessidades reais como a que vivemos e as que virão, o século XXI necessitará de mais diálogo e cooperação. E é nesse ponto que o presidente e seus seguidores entortam o cano, desviando o País do fluxo civilizatório para o mofo do darwinismo social – com o perdão de Charles Darwin. O julgamento virá a todos. Embora tardia, a melhor demonstração vem de governadores e prefeitos. Cansados da desorientação do governo central que joga uns contra outros, decidiram dialogar e cooperar entre si para a compra da vacina. Se der certo, será uma lição de cooperação e confiança a salvar vidas e um ato emblemático de contemporaneidade ante o atraso mórbido.

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