Opinião | Manjedoura está nas calçadas da cidade

Foto: Fatos Desconhecidos/Divulgação

“Os meus olhos estarão enterrados na terra onde será dançada e cantada a liberdade!”

Júlio Lancellotti é um daqueles religiosos que ultrapassam o ambiente da fé. Todo o trabalho do padre com os mais vulneráveis é comovente, como uma luz nestes tempos de exclusão, dor, problemas, traumas e angústias nas ruas. Um esforço lindo empregado para buscar o mínimo de dignidade, respeito e segurança à vida de humanos que por algum motivo o destino desabrigou de um lar, desvirtuou o raciocínio, viu desfalecer a esperança.

Na semana que ficou, véspera de natal, o Congresso, derrubando o veto do presidente Bolsonaro, gravou nas leis dos homens, uma norma batizada com o nome e semelhança do clérigo. A “Lei Padre Júlio Lancellotti” proíbe que espaços livres de uso público, como pontes, viadutos, recebam arquitetura hostil, com materiais ou estruturas que ofereçam riscos, que busquem inibir os moradores de rua. Com isso, todos os equipamentos públicos devem perseguir o objetivo de acolher as pessoas em praças, jardins, calçadas e demais locais de uso coletivo.

As vezes tudo que resta de sentido para a intangível fé é o abraço naqueles que a sociedade esqueceu, que os dias roubaram o cuidado, o olhar, a crença no amanhã. A fé e os dias na colmeia são inseparáveis enquanto não alcançamos o nirvana social.

Eu não sigo nenhuma religião, embora tenha uma curiosidade crescente por aquelas celebradas em terreiros, as de origem africanas. Quando criança, lá em Otacílio Costa, fazia de conta que celebrava missas. Fui cantor em igrejas e, entre as caixas de sapatos, no estoque de uma loja, brincava de rezar com os irmãos do há época noviço Fabian Capistrano, hoje o polêmico padre dos atos golpistas.

Juro que não compreendo como pode a devoção religiosa superar a gritante urgência de acolher o irmão que está na rua. Por favor, não entenda errado… neste momento, quando milhões passam fome, outros tantos estão vagando sem rumo, sem alento, batemos recordes de aberturas de igrejas. Não parece, para você, um contrassenso? Fico pensando se Jesus está nos cultos e missas, repetindo coisas que ficam esquecidas logo após o amém, ou se caminha nas ruas cuidando das feridas do povo.

Nosso momento de sociedade, que implora por mais líderes humanos, como Lancellotti, é a mesma que necessita de leis pensadas como a proposta do padre, criminalizando a aporofobia, a fobia aos pobres. Se o legislativo brasileiro aprovar, rapidamente algumas práticas locais teriam de ser abolidas. Cartazes, publicações, ações de toda ordem de pessoas, agentes ou órgão públicos contra a esmola, ou que façam associações entre o crime e ato de ajudar o próximo, vulnerável em situação de rua, passariam a ser proibidas e passível de punição.

É triste pensar que precisamos de leis para fazer garantir o que deveria ser básico para a consciência de todos. Ajudar, estender a mão e construir oportunidades parecem, para mim, as missões mais transparentes, honestas que qualquer calor espiritual pode desejar.

Um dia destes, ouvindo uma entrevista de outra referência de fé, a Monja Coen, em um dos tantos podcast da moda, ela dizia alguma coisa como: criamos espaços e épocas para representar a fé, a esperança. Por convencionar como um período ou local sagrado, sentimos uma mudança dentro de nós.

O Natal está chegando… que o milagre da união, amor, solidariedade, da partilha e do despertar para uma nova consciência de responsabilidade possa nascer em todos nós!

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