Opinião | Liberdade de expressão

Fotos: reprodução

“Se toda a humanidade menos um fosse da mesma opinião, e apenas um indivíduo fosse de opinião contrária, a humanidade não teria maior direito de silenciar essa pessoa do que esta o teria, se pudesse, de silenciar a humanidade”.

O pensamento de John Stuart Mill, considerado por muitos o mais influente filósofo de língua inglesa do século XIX, resume, com perfeição, o ideário da liberdade de expressão. Um não pode calar a voz de todos, e todos não têm direito de proibir a manifestação individual. Os fundamentos da teoria liberal da comunicação se ancoram nos direitos proclamados por Thomas Paine, um dos pais fundadores dos EUA. Dentre eles, o de que qualquer ser humano pode se guiar “diretamente pela razão, tanto sobre assuntos de governo quanto sobre temas mais específicos”. A tarefa da sociedade é garantir o livre intercâmbio de ideias.

Estamos tratando, como se vê, de normas aplicadas nos sistemas democráticos, não em regimes autoritários, onde o Estado exerce sobre as pessoas rígidos controles. O Estado, segundo a visão de Hegel, encarna a moral. Já a liberdade nesse regime ganha outras leituras, e tem como controlador a figura do “grande irmão”, aquele que leva as pessoas a pensar dentro limites da segurança do Estado.

Na Coreia do Norte, a verdade de Kim Jong-un, o líder supremo, tem ares de sacralidade, e só mesmo os revoltosos contra o regime, sob pena de degola, expressam algo de apelo libertário. Na China, cujo sistema é hoje identificado como capitalismo de Estado, a liberdade de expressão é reprimida pela mão forte da cúpula autoritária. Xi Jinping, o líder do partido comunista, tem o controle de tudo e sobre todos. Na Rússia, de Vladimir Putin, o mandachuva que se perpetua no poder, a voz de Alexei Navalny, o líder da oposição contra o regime, morreu com ele, na prisão.

Esta pequena teia de conceitos cai bem no momento brasileiro. Presenciamos uma querela envolvendo a liberdade de expressão, tendo como principais protagonistas, de um lado, o bilionário construtor de carros elétricos e dono da rede X (ex-twitter), Elon Musk, e, de outro, o ministro do STF, Alexandre de Moraes, sob cuja responsabilidade está a tarefa de regular a teia tecnológica. Musk fustiga Moraes, atribuindo a ele a pecha de ditador e dizendo que o magistrado puxa Lula pela coleira. Já o ministro tem batalhado contra as fake news, considerando que a enxurrada de versões e falsidades, propagada pela rede X, tem poder deletério sobre o processo eleitoral, o que está a exigir uma barreira de controle legal. Ao fundo, o pleito municipal de outubro próximo.

A polêmica assumiu ares de tiroteio, com a inserção de Musk na relação de investigados no inquérito das milícias digitais, a par da possibilidade de sua rede tecnológica deixar o Brasil; e a proibição de resgate de perfis já bloqueados, entre os quais os dos empresários Luciano Hang e Edgar Corona, do blogueiro Alan dos Santos e do influenciador Monark. Alexandre de Moraes, a quem se acusa de interferir na liberdade de expressão, tem dito que as redes sociais não são terra sem lei. Não são terra-de-ninguém.

Nesse ponto, é oportuno retomar a linha conceitual. A acusação de que o ministro está censurando o direito de expressão das pessoas embute o argumento de que tudo pode ser dito, o indivíduo pode manifestar livremente suas ideias, sem a espada do Estado sobre a cabeça. Já o magistrado e seus colegas de Corte pensam que há limites a serem observados na seara da liberdade de expressão.

O desenvolvimento das comunicações, a consolidação dos eixos da democracia e o acesso dos receptores da comunicação às redes sociais, sob o farol do iluminismo, corrente de pensamento do século XVIII, que dá ênfase à razão em detrimento da fé, trouxe para a mesa do debate o conceito de responsabilidade. O cidadão tem direito a se expressar livremente, desde que o faça sob o compromisso de assumir a responsabilidade sobre seus ditos. Significa não deturpar a verdade, não causar danos a outros, não conspurcar valores e princípios da comunidade política.

Dentro dessa linha de raciocínio, Elon Musk exagera quando desenha a feição do ditador em Alexandre de Moraes e este escapole de suas funções ao querer retirar das redes aqueles que se posicionam contra pensam de maneira diferente da sua. Nem lá, nem cá. Moraes pode exigir responsabilidade nas mensagens emitidas por usuários, sem ferir princípios da liberdade de expressão. Musk deve evitar provocar o caos na frente das novas tecnologias. Até parece que deseja ser como o porco do ditado popular: “Nunca lute com um porco: todos ficarão sujos, mas o porco adorará”.

Gaudêncio Torquato, escritor, jornalista, professor titular da USP e consultor político

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