Em meio às leituras que as férias nos permitem, leio Quarentage, Editora Letra D’Água, 2015, de autoria do ex-governador Luiz Henrique da Silveira – LHS (1940-2015). As 1295 páginas da obra reúnem suas crônicas do século atual na imprensa catarinense. Refletem o “espírito de um tempo”, expressão hegeliana que o próprio autor usou em seus textos. Denotam, igualmente, o amor à “pequena pátria”, expressão do filósofo irlandês Edmund Burke para se referir ao sentimento mais genuinamente conservador de um homem público: o amor à comunidade a que pertence. Suas crônicas transparecem esse sentimento e a consciência profunda sobre o caráter do seu povo.
Recebi o livro de presente, em 2023, do então secretário geral do MDB de Joinville, Ademir Vicente Machado. Só agora começo a lê-lo e não se trata de um simples repositório de textos ocasionais. Como suas publicações foram rigorosamente semanais, encontro ali a observação perspicaz de fatos que constituem um encadeamento histórico e indicam notável percepção sociológica sobre Santa Catarina e o Brasil. Sua obsessão pelo desenvolvimento o fez ver a causa original dos entraves, a enxergar a resposta republicana, e a perceber onde estava a potência da solução.
A causa original, o governador relacionou ao centralismo. Insistia que os entraves do desenvolvimento estavam no “gigantismo de Brasília”. Em 2005, lembrava que a maioria das nações desenvolvidas concentravam de 30% e 40% dos tributos nos municípios, cabendo aos governos federais o menor percentual. LHS reclamava que apenas 13% dos tributos ficavam nos municípios brasileiros, enquanto os estados ficavam com 22% e a União 65%. Curiosamente, duas décadas depois dessa crônica, relatório da Receita Federal do Brasil indica que, no ano de 2023, a União concentrou 68%, enquanto aos municípios restaram sete por cento.
Ver: BRASIL, Ministério da Fazenda, Receita Federal. Centro de Estudos Tributários e Aduaneiros. Brasília-DF, 2024 (disponível na Internet).
A resposta republicana LHS vislumbrou nos tempos de prefeito de Joinville, ao realizar um curso na Deutsche Stifung für Internationale Entwicklung, em 1978 na Alemanha. As palavras de um certo professor nunca mais foram esquecidas: “O governo é tanto mais ágil (…) quanto mais próximo estiver daqueles que governa”. A resposta em mente expressava o “espírito de um tempo” que batia à porta. E, nessa perspectiva hegeliana, dava voz a outro pensador, o romancista e poeta francês Victor Hugo, que dizia que ‘existe uma coisa mais poderosa que todos os exércitos: uma ideia cujo tempo chegou’. Essa “ideia” era a descentralização.
Foi a partir dessa convicção intuitiva e pragmática que Luiz Henrique concebeu a descentralização, não como um expediente administrativo, mas como método de governo e, sobretudo, como pedagogia política. Ao redistribuir competências, recursos e decisões, procurou reconectar a esfera governamental às bases sociais do estado, devolvendo às comunidades a confiança na própria capacidade de agir. Não tinha a ver com a fragmentação do poder, uma tolice demandada por críticos acadêmicos. Tratava-se de fazer o poder circular, reconhecendo na diversidade regional catarinense uma energia a ser mobilizada.
E a verdadeira potência da descentralização não estava apenas na reorganização administrativa do Estado. Estava no civismo do povo catarinense. Ao aproximar o poder das comunidades microrregionais, reascendeu-se o senso de corresponsabilidade e de vigilância cívica que caracterizou a formação social de Santa Catarina. Mobilizou a sociedade organizada, fomentou o senso de pertencimento e as identidades territoriais. Estimulou o capital social, fator político-antropológico decisivo do desenvolvimento regional, motivando a cooperação, a confiança mútua e o diálogo intermunicipal, algo que os críticos acadêmicos não perceberam.
Com tudo isso, deu voz a novas lideranças, impactando as tradicionais relações clientelistas.
Não por acaso, essa leitura permanece atual em um contexto de progressivo enfraquecimento da participação cívica e de crescente dependência de decisões concêntricas. Ao final, Luiz Henrique intuiu o que o economista inglês Alfred Marshall formulou com precisão: “no longo prazo, a riqueza nacional é governada mais pelo caráter da população do que pela abundância de recursos naturais”. E acrescento: muito mais pelo capital humano e social do que pelas mãos do Estado centralizado. O enaltecimento da riqueza antropológica de Santa Catarina era o ponto alto dos seus discursos, não por demagogia, mas por profunda consciência antropológica.
Mais que um político astuto, LHS foi a encarnação do rei filósofo que Platão reivindicava para a realização do bom governo. Sua liderança se deveu à formação intelectual, mas também ao seu caráter, às convicções republicanas e à identificação telúrica com Santa Catarina. Isso mereceu o respeito de seus pares, como também a compreensão intuitiva dos catarinenses, do orgulho de ser e pertencer. Ele soube mexer com o sentimento de coletividade, leia-se, com o ethos catarinense. como poucos. E o fez com sinceridade e ilustração poética.
A leitura de seus textos, como a lembrança de sua trajetória e o amor à “pequena pátria” me fazem lembrar o que disse o filósofo alemão Ernst Cassirer (1874-1945): “Os grandes homens não caem dos céus. Toda a sua força se origina da Terra, no solo nativo onde possuem as suas raízes”.
Aos leitores da coluna SC Think Tank, um Feliz Natal e Próspero Ano Novo.
Walter Marcos Knaesel Birkner, Sociólogo, autor de Capital social em Santa Catarina, Ed. Furb, 2006







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