Opinião | Identitarismo racial contemporâneo é um retorno ao século 19

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Durante o século 19, no contexto da expansão do imperialismo europeu, houve uma proliferação do pensamento racial. Nesse período, chamado pelo sociólogo Michael Banton de era da “racialização do mundo”, emergiram teorias que visavam hierarquizar os fenótipos humanos e afirmar, com ares de pretensa “cientificidade”, a suposta “superioridade” dos caucasianos em relação a outros grupos raciais.

O ideário racialista de então tinha como pressuposto basilar a tese de que haveria uma relação entre a psicologia coletiva de um grupo humano e a sua constituição fenotípico-racial. Um grande debate no pensamento antropológico-racial, que ganhou força no final daquele século, dividiu os partidários da “monogenia” e da “poligenia”. Os monogenistas, dentre os quais se incluía Charles Darwin, postulavam que as diferentes raças humanas eram apenas variações fenotípicas da mesma espécie, enquanto que os poligenistas se utilizavam das diferenças culturais entre os povos do planeta para defender que os variados grupos raciais humanos seriam espécies distintas que teriam evoluído de forma independente. Felizmente, a monogenia venceu, e a concepção de que não existe nenhum tipo de determinação racial inata nas diferentes mentalidades dos povos, concomitantemente à ampla aceitação da noção de unidade da espécie humana, tornou-se um consenso estabelecido.

Fundamental nesse processo foi o trabalho do antropólogo Franz Boas que, em sua obra A Mente do Ser Humano Primitivo (1911), demonstrou que as diferenças entre os processos civilizatórios da Europa e do restante do planeta, no início do século 20, auge do domínio ocidental do mundo, não tinham nenhuma relação com a (inexistente) “superioridade” ou “inferioridade” de algumas raças em relação a outras, mas sim com um acaso da história. Boas, com essa posição clara, estava demarcando uma oposição à eugenia e às teorias darwinistas sociais que, à época, entendiam que o desenrolar das relações entre os grupos humanos seria determinado por uma “guerra de raças” que replicaria, no plano das sociedades humanas, o mecanismo darwinista da “luta pela existência” próprio ao restante do mundo orgânico.

Nos dias atuais, com a retomada identitária do discurso político em torno da raça, temos visto um renascimento modificado de algumas dessas ideias. Sob o pretexto do combate ao racismo e de uma reparação ao pesado fardo que a escravidão impôs aos negros em vários países, militantes têm reavivado ideias de “guerra racial”, transformado grupos étnicos em bodes expiatórios e colocado em xeque os pressupostos universalistas e iluministas nos quais se baseia o contrato social das democracias ocidentais modernas, que são vistos como instrumentos de “poder branco” para “oprimir” grupos raciais “dominados”. O que esses ativistas esquecem é que a escravidão sempre existiu fora das colônias europeias antes e depois do século 16, e que as ideias iluministas de dignidade da condição humana, fundamentais para a luta contra a desumanidade da escravidão, são invenções do Velho Continente, sem as quais, muito provavelmente, o trabalho cativo ainda seria considerado algo “normal” no mundo inteiro.

Uma das concepções mais comumente utilizadas pela militância racial dos dias atuais, que é o famoso “lugar de fala”, consiste, na prática, em uma tentativa de interditar a possibilidade de discussão da questão racial dependendo do fenótipo daquele que pretende abordá-la. Existiria, para os identitários, uma incapacidade cognitiva dos não negros em perceber a realidade do racismo de maneira efetiva; isto, em certa medida, é uma versão “requentada” do pensamento racial do século 19, que, conforme dito, postulava a existência de uma “determinação biológico-racial inata” nos padrões psicológicos dos grupos humanos. Quando teóricos e ativistas racialistas contemporâneos dizem frases como “todos os brancos são racistas, e isso não é uma escolha”, estão repondo exatamente a mesma lógica de raciocínio do racismo “científico” que foi usado para justificar o “neocolonialismo europeu”.

 

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