Opinião | Fascismo: muito falatório e pouco estudo II

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O vocábulo “fascista” nunca foi tão banalizado. Hoje, restringe-se a um xingamento manejado pela quase totalidade da esquerda (mas também por uma parte considerável da direita) contra seus inimigos ideológicos, promovendo abusos relativistas tão bizarros ao ponto de esvaziarem o conceito. Na verdade, não seria ousado dizer que se a maioria dessas pessoas que acusam terceiros de “fascista” se deparassem com um de verdade, provavelmente não conseguiriam identificá-lo ou, pior, reagiriam como se vissem um alienígena.

Como a maioria possui memória curta, muitos não se recordam, mas Fernando Henrique Cardoso, José Serra, Geraldo Alckmin, João Dória, Enéas Carneiro (esse o único que de fato possuía algumas características fascistas consistentes) e dezenas de outros políticos brasileiros já foram acusados de fascistas. Muitos acusadores já foram, também, gravemente acusados de fascistas. Lula e Ciro Gomes seriam exemplos. O exemplo mais recente seria o presidente Jair Bolsonaro.

Isso ocorre por uma razão simples: a derrota do Eixo na Segunda Guerra Mundial permitiu às potências vitoriosas não só estabelecer uma nova ordem geopolítica global, em Ialta, mas também construir a sua própria narrativa histórica, e impor a sua própria agenda de valores. Nesse esquema, ao fascismo foi atribuído o papel de “Mal Absoluto”. Como explicado por Carl Schmitt em “O Conceito do Político”, o liberalismo destruiu o modo tradicional de fazer guerra, no qual a inimizade se expressa pelo embate aberto entre combatentes legítimos que se reconhecem mutuamente, inaugurando “guerras morais”, em que todo conflito é sempre um embate entre o Bem e o Mal.

Para o liberalismo, só “combater o Mal” legitima a guerra, então o inimigo deve ser invariavelmente apontado como o Mal Absoluto, a encarnação do Diabo, sendo então desumanizado e podendo ser completamente exterminado, pela desculpa de que “ele também faria isso”.

O estabelecimento do “fascismo” como o Mal Absoluto para a ordem pós-guerra fez com que, em vez do termo significar uma teoria política específica, histórica, autônoma e contextual, com uma série de elementos bastante específicos, ou as ideologias ligadas a essa teoria, também situadas no espaço e no tempo, esse termo passasse a ser apenas um artifício através do qual o adversário político é desumanizado, para garantir aos próprios escravos os seus “2 Minutos de Ódio”, no estilo orwelliano, e autorizar guerras de extermínio.

No âmbito internacional, figuras como Salvador Allende, Slobodan Milosevic, Saddam Hussein, Muammar Gaddafi, apenas para citar alguns, foram acusados publicamente pela mídia e pelas autoridades públicas americanas de “fascistas” meses antes de serem derrubadas. A acusação de “fascismo”, expulsando-os da “humanidade”, tornou as execuções bárbaras desses legítimos líderes políticos “moralmente justificável”. Como o mundo cansou de ver, Hillary Clinton deu pulos de alegria diante da notícia da lenta tortura e execução de Muammar Gaddafi.

A mesma acusação é lançada contra figuras como Vladimir Putin, Nicolás Maduro, Viktor Orban ou Bashar Al-Assad, os quais permanecem incólumes, porém.

O problema dessas acusações, como bem apontado pelo filósofo marxista italiano Diego Fusaro, é que o antifascismo na ausência do fascismo (afinal, o fascismo morreu em 1945 na Europa) não possui outra serventia que apagar os “incêndios” do sistema. Ele explica da seguinte forma com um caso hipotético: 1) Os grandes empresários e políticos liberais querem abrir os portos para fluxos de imigrantes e mercadorias estrangeiras; 2) Figuras ou movimentos de orientação nacionalista, conservadora ou mesmo de uma esquerda antiliberal criticam a ideia, apontando para as consequências negativas que acarretariam; 3) Imediatamente, os antifas (antifascistas) são acionados para, por meio de violência, pressão e outros métodos, silenciar a oposição aos projetos liberais.

Trazendo a questão para o contexto brasileiro, nada de bom pode vir desse surto de antifascismo na ausência do fascismo. Ele ataca Bolsonaro pelos motivos errados. Porque faz piadas politicamente incorretas, mas não porque por trás dele se esconde uma perigosíssima seita liderada por Olavo de carvalho, tampouco por causa das políticas ruinosas de Paulo Guedes. Se Bolsonaro caísse e assumisse Mourão, com Guedes junto, alguém tem a ilusão de que esse surto antifascista continuaria?

Uma possibilidade ainda pior é que esse surto antifascista esteja sendo influenciado indiretamente pelo próprio governo Bolsonaro (de toda forma, obviamente está sendo aproveitado), para legitimar um possível “fechamento de regime”, e nisso os antifas seriam, novamente, os idiotas úteis do sistema.

Mas aqui eu poderia ser questionado pela minha afirmação de que “o fascismo morreu”, e de que a oposição agita por um “antifascismo na ausência do fascismo”.

Afinal, Bolsonaro não seria fascista? Primeiro, o que dizem os que afirmam que ele é fascista? Que Bolsonaro faz piadas com minorias e não gosta muito delas, que os seus seguidores o idolatram, que ele promove um “ultranacionalismo” (essa afirmação é desprovida de mínimo realismo empírico), que “exalta a masculinidade”, que é “contra a ciência e as artes” e que quer um “retorno a um passado idílico”.

O fato é que essas afirmações, tiradas da péssima cartilha de Umberto Eco, poderiam ser tranquilamente feitas sobre Lula, Ciro Gomes, Brizola, Vargas, e a lista é longa, muito longa. Na verdade, como Umberto Eco foi um liberal convicto, o seu conceito de fascismo, poderia ser tranquilamente atribuído a quase todos os líderes carismáticos e populistas do século XX.

Por falar em Vargas, é curioso ver supostos “trabalhistas” propalando aos quatro ventos que Bolsonaro é fascista. Na verdade, por todos os critérios utilizados pelos “antifascistas” para demarcar Bolsonaro como fascista, Vargas seria ainda “mais fascista”. Boa parte dos antifas “de cena”, naturalmente, confirmariam isso. Eles, que detestam Vargas, são em sua maioria anarco-comunistas ou socialistas libertários. Então por que os “trabalhistas” estão adotando as perspectivas de seus inimigos históricos?

Mas afinal, então, o que é fascismo?

Na disciplina acadêmica dos “Estudos sobre Fascismo”, alguns professores e intelectuais se destacam.

Para Zeev Sternhell, estudioso israelense, escritor de “The Birth of Fascist Ideology”, o fascismo, nascido na França no seio da esquerda revolucionária do final do século XIX, era uma reação revolucionária à modernidade e aos seus valores, rejeitando o positivismo e a democracia, bem como liberalismo e comunismo, mas pretendendo preservar
os benefícios do progresso.

Para Roger Griffin, cientista político britânico, escritor de “The Nature of Fascism”, o fascismo é uma ideologia revolucionária política cujo núcleo é uma forma palingênica (renascida) de ultranacionalismo populista, que busca moldar o povo em uma comunidade nacional por uma aliança entre classes para deter a maré de decadência.
Segundo Emilio Gentile, historiador italiano especializado no fascismo, o fascismo seria uma sacralização e estetização totalitária da política, envolvendo conciliação de classes (com líderes majoritariamente dos setores médios), a busca por uma regeneração nacional, a rejeição do individualismo, da democracia, do materialismo, uma visão trágica da vida, e a defesa do estabelecimento de uma ditadura unipartidária, além de vários outros elementos.
Várias outras definições relevantes, como a de Stanley Payne ou a de James Gregor poderiam ser fornecidas.
Podemos, ainda, recorrer a definição de Aleksandr Dugin, filósofo e cientista político russo, autor de “A Quarta Teoria Política”.

Dugin define o fascismo, a terceira teoria política da modernidade, como uma teoria política cujo sujeito é a Nação (entendida no fascismo italiano como sinônimo de Estado, e no alemão como sinônimo de Raça). O fascismo teria sido uma reação nacionalista de caráter chauvinista ao liberalismo e ao comunismo, que fundia valores modernos com apelos à tradição.

Por qualquer uma dessas definições, Jair Bolsonaro jamais poderia ser considerado um fascista, por pior que Bolsonaro seja. Como disse Mino Carta, jornalista ítalo-brasileiro cujo pai foi preso por Mussolini, os fascistas, por mais errados que estivessem, eram pelo menos defensores da soberania e do engrandecimento de seu país. Nada poderia ser mais distante de Bolsonaro, que anseia por colocar o Brasil em uma perspectiva subalterna.

Bolsonaro tampouco quer qualquer conciliação de classes. Sua política não visa integrar o proletariado em um projeto nacional, garantido por um corporativismo econômico. Ao contrário, Bolsonaro assume frontalmente e declaradamente o lado da alta burguesia na luta de classes contra o proletariado, que ele tenta converter em precariado para torná-lo ainda mais frágil.

Para Bolsonaro, a Nação é apenas fruto de um contrato social entre indivíduos. O indivíduo está no centro de tudo. O “passado idílico” dele é moderno, demasiado moderno, fazendo alusão ao famoso título de Nietzsche (Humano, Demasiado Humano). Seus valores são ainda mais modernos, completamente liberais. Afinal, a sua “família tradicional” é apenas a representação da família nuclear burguesa, baseada em uma estética americana dos anos 50.
Em suma, não existe condição de considerar Jair Bolsonaro fascista. E se Bolsonaro não é fascista, definitivamente, a quem serve invocar o “antifascismo”? Por que a Rede Globo, Wilson Witzel, Felipe Neto, a Microsoft, o Starbucks, e praticamente todo mundo que é parte da classe cosmopolita global estão falando em “lutar contra o fascismo”?
Porque isso serve apenas para desviar a atenção, tal como o anticomunismo na ausência do comunismo, promovido pela direita reacionária olavo-bolsonarista. Nas ruas do Brasil, se digladiam sectos antifascistas e anticomunistas, enquanto corpos se amontoam e o país soçobra à beira do colapso econômico.

O liberalismo? Permanece dogma inquestionável, pairando por cima de tudo, sem que antiliberais se mobilizem para combatê-lo. Permanece defendido por jornalistas, juristas, acadêmicos e “técnicos”, que após a queda de Bolsonaro, continuarão a guiar o Brasil.

O antifascismo, junto ao anticomunismo, é uma imensa prisão mental que nos mantém escravizados, enquanto acreditamos ser livres e lutamos contra moinhos de vento, em uma versão pós-moderna e do capitalismo tardio, do Quixote de Cervantes.

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