Mesmo o mais calmo dos ribeirões cansa da rotina de escorrer sempre pelo mesmo percurso rumo ao destino final. Lentamente, em cada quebrada, vai comendo uma margem para depositar os sedimentos em outro ponto qualquer. Aquele obstáculo alterado transforma o caminho. Ontem era curva, amanhã desaparece. O curso se vai, ganhando paisagens diversas. A natureza muda sem pedir licença, ou plano de governo, nem mesmo requerer placa de inauguração. Apenas muda! E se até o rio tem esse direito, por que raios nós não?
Todos os dias, em duas direções, caminho e observo a margem revitalizada do Rio Itajaí-Açu. A nova “prainha” é, digamos, um quintal da minha casa. Posso chegar de pijama, vestindo minha Havaianas com a cara do Homer Simpson estampada, segurando a guia da Wanda e Xereta, minhas cachorrinhas que já sabem até mesmo dos buracos que existem por ali.
A noite na região é linda. Com todo respeito aos mais sensíveis, se colocar uns botequinhos com happy hour, pagode ou voz e violão, dá para dizer que é uma miragem no coração da sisuda Blumenau, parece uma outra cidade. Luzes refletidas na água, famílias posando para o Instagram, aquele ar triunfante de quem acabou de vencer uma batalha, um dia. Confessa, vai! Não combina com a imagem do “município de gente trabalhadora”.
Nestes dias, retornando da Foster Pet Place, quando dei atenção, estava mentalmente cantarolando: “cidade maravilhosa, cheia de encantos mil…” Que ironia de fim de filme do Kleber Mendonça Filho.
Essa é a música do outro Rio, Tarciso. Quase o hino oficial da velha capital do Brasil. É aquele com mar de verdade, praia que não alaga casas, ondas que não carregam geladeiras. O nosso Rio é o Itajaí-Açu. E quando ele decide virar mar, não tem salva-vidas, calçadão, bundas de fora, barracas e cerveja. Só um mundaréu de água barrenta engolindo memórias, deixando marcas na parede que a gente tenta esquecer até a próxima enchente.
Cada cota decorada treina o morador para o alagamento que chegará, em algum momento. E obras como a urbanização da margem do rio, todo este embelezamento, anestesia a dor que vivemos. Canalizamos o monstro, demos LED pra fera, transformamos trauma em cenário. Agora temos prainha sem praia, cartão-postal sem mar, e a ilusão de que domesticamos o que nunca foi domável. É como colocar peruca branca e vestidinho em um pitbull e fingir que ele virou poodle.
Eu continuo, como diz aquela música do Gil sobre o Chacrinha, balançando a pança. Observando, duvidando, torcendo. Na esperança para que a próxima enchente não prove, mais uma vez, que a gente aprende devagar e esquece rápido.
Mas tem dias em que, atravessando a ponte e encarando a superfície beijada pelo reflexo das luzes na água, me vem à cabeça outra música. Bem mais antiga que o incomodo exploratório que atracou neste terra. Em inglês, certamente seus ouvidos já tropeçaram na letra: Amazing grace, how sweet the sound/ That saved a wretch like me/ I once was lost, but now I’m found.
Graça incrível, som doce. Que salvou um desgraçado como eu. Estava perdido, agora fui encontrado. É o hino dos náufragos, dos que se afogaram e boiaram de novo, dos que mudaram de curso porque o antigo não levava a lugar nenhum.
Acho que esta música de 1772 ainda faz sentido nos dias de hoje. Na beira deste rio em 2025, como luz, a gente percebe que clareia o pensamento porque sempre precisamos acreditar que dá para recomeçar. Mesmo nos momentos mais doídos e difíceis, quando tudo parece perdido, quando o fim chega encerrando um ciclo… até no fechar de um livro existe poesia para uma nova história surgir. E, como sugere o título, até um desgraçado como eu tem direito à redenção, ou, seguindo a prosa, se um rio tem direito de mudar de ideia sobre onde quer passar, por qual motivo o destino precisa ser igual ao que foi?
Bonito e esperançoso, não acha? Admito, um pouco embriagado, meio emocionado com as resoluções de fim de ano, me pego desejando menos heroísmo e mais lucidez para 2026. Eu quero filas de conquistas, champanhe e vitórias.
Sabe aquelas realizações que chegam sem precisar de filtro e iluminação especial em LED? É destas que estou esperando! Luta, a vida já oferece em abundância. Desejar mais seria crueldade, sadismo. E elas são tão inevitáveis quanto uma ressaca de segunda-feira pós-férias. Algo como desejar que o rio continue sendo nosso inimigo quando ele só quer ser, veja só… rio!
Que venha o próximo ano. Para que possamos mudar de caminho. Olhar para o correr do Itajaí-Açu e também aprender com a natureza. Was blind, but now I see. Estava cego, mas agora eu vejo. Feliz 2026!
Tarciso Souza, jornalista e empresário



Seja o primeiro a comentar