Opinião: erros da ciência brasileira perante Bolsonaro

Foto: Alan Santos/PR/Reprodução

Há incontáveis os políticos e jornalistas que não querem olhar para Bolsonaro e ver o que ele faz e o que ele de fato é. Contudo, a CPI da Covid nos mostra que essa tendência não se limita a políticos e jornalistas, pois também boa parcela dos cientistas adotou a mesma postura.

Os políticos e jornalistas imaginam um Bolsonaro autoritário que quer ser ditador através de golpe. Não se trata disso. Parece que não querem descobrir o pano ideológico o que se esconde atrás de suas preconcepções, assim encarando sem obstruções a real figura do Presidente Jair Bolsonaro.

Esse, na verdade, foi exonerado do Exército aos com menos de 40 anos por motivo de mal comportamento e deslealdade. Depois disso, iniciou uma carreira parlamentar que cumpriu 28 anos. Em todo esse período, o que se viu foi um sujeito bonachão, pouco trabalhador e incapaz de administrar qualquer coisa. Preparar um golpe e administrar o país com organização ditatorial não é seu forte. Claro que não precisa disso, uma vez que já está no governo e as classes sociais que o sustentam, as elites econômicas, estão razoavelmente contentes com ele.

Bolsonaro foi um militar frustrado, uma vez que não se adaptou a um conjunto rígido de normas e padrões das Forças Armadas. Ele parece, em função disso, encontrar grande satisfação em contrariar regras racionais. Tudo que é civilizatório e o que fez fracassar na carreira militar é motivo de contrariedade, e agora como presidente ele se dedica a fazer da vida da nação um caos, como é o caos dos lugares que sempre o elegeram: vários bairros problemáticos do Rio de Janeiro.

Bolsonaro se adaptou  bem ao neoliberalismo, ou melhor, exatamente porque é a ideologia de apologia da liberdade individual máxima, em detrimento de toda organização necessária a uma sociedade que quer funcionar como sociedade. Bolsonaro não quer o fim da democracia, são as normas republicanas que o causam desconforto e estão sob certa ameaça durante seu mandato. As instituições republicanas devem sucumbir e a democracia representativa aliada ao darwinismo social precisam não só continuar, mas se intensificar. Que existam eleições e que cada um seja o “empresário de si mesmo”, tendo como controladores sociais a milícia, as igrejas evangélicas e o capital financeiro e a “mídia responsável”. Me parece que o conservadorismo à brasileira de Bolsonaro é feliz nesse regime.

Cientistas também ignoram tudo isso, e inventaram um Bolsonaro tão imaginário quanto o ditador inventado pelos políticos e jornalistas. Natália Pasternack, bióloga e divulgadora científica que foi ouvida na CPI da Covid como uma consultora, criou o Bolsonaro negacionista da ciência. Mas o presidente nunca entrou nessa polêmica ciência versus não-ciência. Ele sempre trabalhou com outra dualidade: liberdade versus não-liberdade. Todas as vezes que ele defendeu o uso de cloroquina ou qualquer outra medida estranha ao bom senso médico e científico, ele o fez invocando a liberdade pessoal do paciente e a autonomia médica. Inclusive, quando ele próprio ficou doente, fez questão de frisar que seu médico é que estava lhe receitando cloroquina, e que os exames necessários para a aplicação vinham sendo feitos com médicos e hospitais idôneos. Era verdade.

O negacionismo típico do QAnon, teoria da conspiração de extrema direita, criada nos Estados Unidos, que alega haver uma cabala secreta, assim como de outras seitas americanas, inclusive o do Olavo de Carvalho, nunca foi adotado por Bolsonaro. E a prova disso foi a criação do Ministério da Saúde Paralelo. Ali ele compareceu não para falar contra a ciência, mas para dar espaço para Osmar Terra, médico, e para o Zanotto, cientista. Ambos falaram na condição de porta vozes da ciência. Como ele mesmo disse, “eu procurei homens com o conhecimento” sobre o assunto. O discurso de Zanotto, nesse dia, não foi negacionista, mas se pautou por falar dos perigos (reais) de vacinas. Falou o que o presidente queria ouvir, claro! Mas falou não no âmbito do negacionismo. O que disse estava dentro de um escopo distinto daquele pedido para um bom senso necessário naquele momento e depois.

O erro de Natália Pasternack e muitos outros cientistas das mais diversas áreas do conhecimento científico, advém do fato de que todo cientista que ainda navega no século XIX não consegue sair do positivismo. É um erro que nem é propriamente dela, mas do tipo de formação que recebeu. Boa parte dos cientistas possuem uma visão ingênua a respeito da ciência. Acham que a ciência é neutra, que a ciência não tem lados etc. Para se contraporem a um indivíduo trôpego e confuso com as palavras como o senador Girão, acabam fazendo frases bombásticas,  mas que não se sustentam no âmbito das discussões da metaciência e da filosofia. A ciência não é neutra e ela tem sim lados. Ele é feita por homens, e não por deuses. A ciência obedece a visão humana do pesquisador tanto na hora que ele inicia a pesquisa quanto na hora que ele a conclui. A busca pela objetividade é um ideal. E a objetividade não implica em neutralidade.

Muitos cientistas acham que a ciência é neutra porque, quando eles concluem, imaginam que uma tal conclusão veio por um trajeto computacional, feito por algoritmos, e que eles não formularam hipóteses que conduziram a resultados e que, ao final, na conclusão, eles não estão diante de algo que foram eles mesmos que conseguiram alcançar. Eles fetichizam os objetos que manipulam. Eles se perdem diante de certa aparente autonomia da natureza. Caso fossem mais atentos, mais interessados em retomar leituras de filosofia e teoria do conhecimento, perceberiam que as conclusões a que chegam estão contaminadas de decisões exclusivamente humanas. Essas conclusões podem ser objetivas e, ainda assim, nada neutras.

Esse erro diante da ciência, feito pelos positivistas, se soma ao erro de acreditar que Bolsonaro está no debate em que o negacionismo se insere. Com esses dois erros, o edifício dos cientistas na CPI, até agora, pode conquistar adeptos na imprensa, mas diante de uma análise mais técnica, mostra-se uma construção de pés de barro.

Estamos sempre combatendo Bolsonaro sem combater o bolsonarismo, ou seja, essa concepção política adepta da democracia representativa e do Estado mínimo, contrária às normas republicanas e apoiada em sustentáculos duvidosos da sociedade brasileira, conforme exposto em trecho anterior desse mesmo texto. Exatamente porque queremos derrotar o adversário com argumentos de autoridade, que na verdade não passam de “carteiraços” desnecessários. Enquanto fazemos isso, o bolsonarismo vai se fortalecendo e esperando Bolsonaro passar, pois Bolsonaro é pessoa física, e o bolsonarismo é uma figura de linguagem que representa uma tendência política flexível, facilmente adaptável a outro nome.

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