Opinião | Eleições municipais: é sensato pensar e debater a política

Imagem gerada com IA

Os deputados e senadores constituintes responsáveis pela elaboração da Constituição Federal de 1988 estabeleceram o tempo de exercício de mandatos do poder executivo e, do poder legislativo nas instâncias federativas do Estado brasileiro, quais sejam: nacional, estadual e municipal.  O período de mandato dos eleitos para o poder executivo, de presidente da república, governador e, prefeito é de quatro anos, com a possibilidade de candidatar-se à reeleição para exercício de um segundo mandato. O mesmo período para os mandatários do poder legislativo, deputados federais, deputados estaduais e vereadores, que podem reeleger-se indefinidamente.  Exceção para mandato dos senadores que é de 8 anos, com a possibilidade de reeleição contínua.  A legitimidade dos mandatários do poder executivo e do poder legislativo nas três instâncias federativas constitutivas do Estado se afirma a partir do sufrágio, do voto, que no caso do Brasil é obrigatório aos brasileiros aptos a votar. Em casos em que o cidadão não exerce o direito de voto no dia da eleição deve encaminhar justificativa ao Tribunal Eleitoral como forma de manter a plenitude de seus direitos. O poder judiciário que compõe com os poderes executivo e legislativo os poderes do Estado não deriva sua legitimidade do voto. Os cargos de juízes, procuradores, promotores públicos, desembargadores, entre outros derivam de concurso público, ou advém de indicação do presidente da república e, após aprovação pelo congresso nacional e senado, no caso de juízes do Supremo Tribunal Federal (STF), Superior Tribunal de Justiça (STJ), Tribunal Superior do Trabalho (TST), Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e Superior Tribunal Militar (STM)e,  e do Procurador Geral da República.

Diante do exposto é preciso ter presente que as eleições no Brasil são organizadas em intervalos de dois anos entre eleições majoritárias e proporcionais em âmbito nacional e estadual e, eleições majoritárias e proporcionais em âmbito municipal. Neste ano, como se sabe, ocorrem eleições para prefeitos e vereadores nos 5.568 municípios do Brasil. Entre os motivos desta segmentação dos processos eleitorais se pode aventar a complexidade a que seria submetido o eleitor caso as eleições das três instâncias federativas do Estado brasileiro (municipal, estadual e federal) fossem unificadas em uma única eleição. Também é possível considerar que o número de candidatos majoritários e proporcionais, bem como de partidos políticos, alianças partidárias praticamente inviabilizaria o debate em torno de propostas e programas políticos relativos às especificidades locais, estaduais e nacionais.  Porém, é preciso ter presente que a segmentação das eleições na forma como foi constituída não se apresenta como garantia de debate qualitativo em torno de programas político-partidários apresentados (quando apresentados) durante o período de campanha.

Mas, no formato como conhecemos e, participamos na atualidade as eleições são uma prerrogativa do Estado liberal moderno, cujo regime de governo se alicerça na democracia representativa.  Assim, para compreender suficientemente as origens e finalidades das eleições é preciso avançar na compreensão do que é o Estado.  Como ponto de partida é preciso ter presente de que o Estado é uma criação histórica. Ou seja, sua existência remonta aos últimos três séculos. As sociedades que nos antecederam em milhares de anos assumiram outras formas de organização política  diferentes da que estamos habituados sob a lógica do Estado-nação.

O Estado moderno surge e se afirma como estrutura política, econômica e jurídica sobre um território e uma população, a partir do século XVI.  Território e população são recursos à disposição do Estado que no exercício de seu poder soberano possui prerrogativas de uso legítimo da violência para a manutenção de seus interesses estratégicos. Em contrapartida os indivíduos nascidos, ou de nacionalidade vinculada a um determinado Estado, ao abrirem mão do exercício irrestrito de sua liberdade recebem a promessa de garantia de suas vidas e de suas propriedades por parte do Estado. Inicialmente o Estado moderno se apresenta como Estado absolutista, cujo exercício de sua soberania (poder) sobre seus súditos se expressava no direito de “fazer morrer ou deixar viver”. A partir de fins do século XVIII e, ao longo do século XIX, em função das transformações promovidas pela Revolução Industrial, pelas Revoluções burguesas (Revolução Inglesa; Revolução Francesa e, Revolução Russa), mas também pelo aumento demográfico, a máxima do poder soberano em relação aos indivíduos se altera e, trata-se de “fazer viver e, deixar morrer”. Ou seja, do século XIX aos nossos dias, o Estado passa a delimitar os interesses públicos e privados com o intuito de uma gestão eficiente e eficaz sobre os seus recursos estratégicos: território e população.

Porém, é preciso considerar que o Estado não é uma entidade transcendente, uma divindade, mas e resultado das relações de poder que se constituem no interior das mais distintas sociedades. A preservação das relações de poder que constituem o Estado no interior de uma sociedade requer a constituição de instituições, de regras e normas que garantam a representatividade dos mais distintos grupos sociais que disputam o poder. O poder destituído de mediações institucionais e normativas descamba em violência. A violência corrói as relações de poder resultando em Estados ditatoriais e totalitários.  Assim, no contexto dos Estados modernos constituem-se instituições, entre elas os partidos políticos, que aglutinam interesses dos mais distintos grupos sociais que disputam o poder, garantindo a representação de seus interesses por meio do controle do Estado, mas com o compromisso de preservar em última instância os interesses públicos. Acrescente-se a esta condição institucional e normativa o direito de voto a cada um dos indivíduos, para que possa expressar seu vínculo ideológico, a partir de seus interesses pessoais e, ressalvados os compromissos públicos, com um dos distintos grupos sociais que disputam o poder, condição que conhecemos como democracia representativa.

Portanto, as eleições se constituem e se justificam no contexto do Estado moderno e, sua finalidade é promover a partir das instituições, das regras e do controle do Estado, o debate político entre os mais distintos interesses de grupos sociais no contexto de relações e disputas de poder em governar o Estado. Sob tais prerrogativas, a finalidade das eleições é promover por meio das instituições estatais, de seus regramentos estabelecidos pelo poder judiciário e observados pelo poder judiciário (Tribunal Superior Eleitoral), bem como de instituições sociais reconhecidas pelo Estado, entre elas os partidos políticos, o debate em torno programas de governo, que expressem uma concepção de Estado, de políticas públicas, de justiça social, de economia, de preservação dos interesses públicos, e de estímulos à iniciativa privada na medida em que demonstram responsabilidade social e, sobretudo em relação aos bens públicos.

Diante do exposto, faz-se necessária as seguintes considerações. Evidentemente que outras considerações são possíveis e desejáveis que fossem apresentadas e debatidas, mas nos ateremos neste artigo a 4 (quatro) considerações. A primeira consideração requer o reconhecimento dos indivíduos e da sociedade, de que é nas eleições municipais que o indivíduo é convidado a pensar e a debater o Estado em sua instância municipal. Ou dito de outra forma, é o momento em que pode despertar para o fato de que o Estado (e os grupos sociais que disputam seu controle) em seu âmbito local incide diretamente em sua vida, por meio de impostos, de prestação de serviços públicos. Ou seja, o Estado está defronte a sua porta. Não é o Estado em sua conformação federal, ou estadual, mas o Estado em sua condição local.  É a possibilidade de participar intensamente do período eleitoral, analisando, debatendo as propostas de governo dos distintos partidos políticos e de seus candidatos que disputam o pleito almejando cargo legislativo, ou executivo.

A segunda consideração implica no reconhecimento de que as eleições municipais estabelecem as bases político partidárias da disputa pelo controle do Estado nas eleições estaduais e federais nos próximos dois anos. Desta percepção e da primeira consideração acima apresentada, decorre o reconhecimento da importância crucial que as eleições municipais assumem nos 5.568 municípios brasileiros.  Ou seja, neste contexto, a campanha eleitoral municipal assume importância crucial, pois os grupos sociais que disputam o controle do Estado brasileiro possuem suas raízes e se manifestam no plano local. Atentar para o debate, para análise das propostas e programas de governo de cada um dos candidatos (ao legislativo, ou ao executivo) é imperativo para o indivíduo que reconhece que a política não é atividade exclusiva dos políticos, mas pelo contrário é ação pública, ação entre cidadãos comprometidos com a promoção e o desenvolvimento de seu município, estado e país.

A terceira consideração requer que os indivíduos reconheçam os partidos políticos (instituições legitimadoras da democracia representativa sobre o qual se justifica o Estado de Direito). Por mais que estejam desgastados, desacreditados pela opinião pública é crucial no contexto das eleições municipais que o cidadão possa se questionar, caso queira fazê-lo, evidentemente: Qual a ideologia (conjunto de ideias) do Partido? Qual sua concepção de Estado, de política pública? O partido tem propostas de participação popular nos rumos do governo? Quais grupos sociais que o partido representa? Qual o compromisso do partido e de seus candidatos com a primazia dos interesses públicos? O partido tem integrantes com tendências patrimonialistas (de tomar para si, ou para seus apoiadores parte do patrimônio público), ou dispostos a práticas de nepotismo? (de nomear parentes para cargos da administração pública), entre outros questionamentos que podem situados.  Aqui ainda é preciso considerar que no Brasil não se avançou no debate em torno de candidaturas de indivíduos independentemente de sua vinculação partidária.

A quarta consideração refere-se ao voto. O voto é uma conquista social alcançada após lutas e exigências sociais ao longo dos últimos séculos. Não é bondade das oligarquias rurais e urbanas que se constituíram no Brasil colônia e se mantém presentes até os dias de hoje na política local, estadual e nacional. O voto ainda é obrigatório no Brasil e, este é outro debate a ser feito em outro momento em função de suas implicações teóricas, conceituais e práticas.  Mas, sob as condições objetivas em curso trata-se de exercer o direito de voto no dia das eleições após analisar, considerar e, talvez debater com o círculo de amigos, parentes, vizinhos as melhores propostas político-partidárias para governar o Estado em âmbito municipal.  Porém, é preciso alertar para o fato hediondo, execrável da prática de compra e de venda do voto. É preciso deixar explícito que candidatos que compram e eleitores que vendem o voto cometem um brutal ato violência contra os interesses sociais, coletivos, citadinos.  Comprar e vender voto são atos de violência. Destroem as relações de poder constitutivas da política como ação comum com vista à preservação dos bens públicos, dos interesses da coletividade.  Antes de vender o voto, caso não encontre proposta partidária consistente, vá à urna e anule o voto. Anular o voto é uma forma de afirmar que nenhum dos candidatos e, entre eles os possíveis eleitos, possuem legitimidade, na medida em que suas propostas não contemplam suficientemente compromissos com o espaço público, com os bens públicos.

E para finalizarmos este texto, mas mantendo o debate em torno das eleições em aberto, cabe ainda considerar que neste ano de eleições municipais é imprescindível nos afastarmos da violência promovida pelas fake news. A mentira violenta a política (ação comum), cerceia o diálogo, impede o debate, reduz a capacidade de análise das propostas político-partidárias em relação ao espaço e as instituições públicas, bem como na preservação do bem comum.  A mentira, (fake news) não promove o interesse coletivo, condição por excelência da política, mas incentiva e dissemina o embrutecimento, a ignorância, a obtusidade do pensamento e a ação grotesca. Promove a ausência de disposição para considerar propostas e participar do debate público.

Participar das eleições municipais em curso este ano requer o exercício do bom senso para compreender as relações de poder em curso durante a campanha e, o compromisso de preservação do espaço público, dos bens públicos na medida em que são fundamentais para a promoção da justiça social, da cidadania, do desenvolvimento humano e social consistente.

Dr. Sandro Luiz Bazzanella, Professor de Filosofia Política

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