Opinião | A moda de chamar pais de tóxicos: mito, exagero ou realidade?

Imagem gerada com IA

Nos últimos anos, a expressão “pais tóxicos” tem se espalhado pelas redes sociais, livros de autoajuda, consultórios de psicologia e até em conversas cotidianas. Mas afinal, o que ela realmente significa? Todo pai que frustra um filho é tóxico? Pais tóxicos ou apenas pais humanos. Mas será que sabemos usá-la corretamente? Será que qualquer discordância ou limite imposto por pais já deve ser visto como toxicidade?

O conceito de “pais tóxicos” refere-se a comportamentos parentais persistentes que causam danos emocionais, mentais ou físicos aos filhos, muitas vezes de forma sutil e repetitiva. Não se trata de erros pontuais, que qualquer pai, mãe ou cuidador inevitavelmente comete, mas sim de padrões de comportamento e de uma lógica de interação que corrói a autoestima, prejudica o desenvolvimento emocional e impede o indivíduo de construir relações afetivas funcionais e saudáveis.

Uma recente pesquisa com mais de 20 mil residentes na Inglaterra e no País de Gales, com idade igual ou superior a 18 anos, mostrou que o abuso físico infantil diminuiu de 20% para 10% nas últimas décadas, enquanto o abuso verbal aumentou de 11,9% para quase 20%, sugerindo uma possível substituição de formas de abuso. Um dado que chamou a atenção nesta pesquisa foi o impacto no componente isolamento social: o abuso verbal teve um efeito mais forte do que o físico na dificuldade de “sentir-se próximo de outras pessoas” (aumento de 90% na chance versus 33%).

Esses dados mostram que as formas de abuso estão se transformando, o que reforça a necessidade de distinguir entre erros comuns de pais e padrões de violência verbal ou psicológica de fato nocivos.

“Pais tóxicos” são geralmente identificados pelo hábito de criticar constantemente os filhos, manter relações baseadas em culpa, manipulação ou chantagem emocional, por exercer controle excessivo sobre suas vidas, além de demonstrar ausência de afeto e validação, acompanhados de abusos verbais ou físicos. Por isso, a palavra “tóxico” funciona como metáfora: assim como uma substância venenosa, esses comportamentos contaminam e enfraquecem a saúde emocional dos filhos.

Embora a ideia de pais prejudiciais já estivesse presente em modelos de educação tradicionais mais rígidos e autoritários — basta lembrar da difícil relação do escritor alemão Franz Kafka com o pai —, o termo “pais tóxicos” ganhou força nos anos 1980 e 1990. Um marco nesse processo foi o livro Toxic Parents (1991), da terapeuta americana Susan Forward, que ensinava adultos a reconhecer e a se libertar da influência negativa de seus pais. A obra teve grande repercussão ao deslocar o foco do abuso infantil físico e sexual, já amplamente discutido, para o abuso psicológico, até então pouco considerado. A partir daí, o tema ganhou espaço em consultórios de psicologia, em livros de autoajuda criando um nicho no mercado editorial.

Com a popularização do tema, algumas celebridades, como Michael Jackson, sentiram-se encorajadas a falar abertamente sobre os abusos sofridos na infância. Além das surras violentas com cintos e outros objetos, o cantor relatou críticas cruéis feitas por seu pai à sua aparência, bem como o fato de ele e seus irmãos terem sido privados de uma infância normal para se dedicarem exclusivamente à carreira artística. Com o tempo, o conceito extrapolou o ambiente clínico e literário e se transformou em um fenômeno cultural. Hoje, basta abrir o TikTok ou o Instagram para encontrar listas como “10 sinais de que seus pais são tóxicos”.

Estamos tratando aqui de um conceito que foi criado para nomear relações de abuso real — físicas, emocionais ou psicológicas — que deixam marcas profundas. No entanto, ao se tornar um fenômeno cultural, utilizado até mesmo por psicólogos sem o devido rigor, e especialmente nas redes sociais, é provável que tenha passado a ser empregado de forma exagerada. As queixas e os critérios apresentados por muitos filhos em redes sociais e em comunidades virtuais sobre o tema são tão amplos e frágeis que praticamente nenhum pai ou mãe escaparia dessa classificação.

Muitas dessas situações, embora causem frustração aos filhos, fazem parte do processo educativo e não devem ser confundidas com toxicidade real. Entre as queixas mais comuns estão as de que os pais não aprovam cursos, carreiras ou estilos de vida, que criticam certas amizades ou parceiros românticos, que impõem regras sobre horários de chegada, uso do celular ou internet, que exigem responsabilidades em casa ou nos estudos, que restringem os privilégios quando não cumprem deveres, que não “apoiam todos os sonhos” de seus filhos e  até a de pais amorosos e superprotetores, por criar filhos pouco resilientes, que depois sentem dificuldade em lidar com frustrações.

Também não é incomum ouvir filhos adultos afirmarem que seus pais são tóxicos por causa das dificuldades que enfrentam na vida. Muitas vezes, porém, trata-se de consequências de escolhas e decisões tomadas à revelia da vontade ou da orientação de seus pais. Quando os resultados não correspondem às expectativas, é comum que esses filhos olhem retrospectivamente para sua história e tentem responsabilizar os pais pelo próprio fracasso.

Assim, independentemente da conduta parental — seja ela de cuidado, de erro humano ou até de superproteção — os pais acabam sendo vistos como culpados quando as coisas não saem conforme os filhos desejam. Essa postura de culpabilização retroativa não contribui para a elaboração das próprias responsabilidades e tende a perpetuar ressentimentos, em vez de promover amadurecimento. Um dos maiores desafios do amadurecimento é reconhecer que a vida adulta exige assumir a autoria das próprias escolhas, em vez de buscar culpados no passado.

O abuso parental é um problema sério e precisa ser bem compreendido. É uma ferida aberta no tecido social provocada justamente por aqueles que deveriam dar afeto aos filhos e educá-los para a viverem como adultos emocional e afetivamente saudáveis. Se você vive nesta situação ou sabe de alguém que vive, procure ajuda, busque orientação ou denuncie!

Exatamente pela gravidade da situação é que os pais que se esforçam para amar e cuidar de seus filhos – numa sociedade em que as instituições, os papeis sociais, as regras morais, as figuras de autoridade e as relações se tornaram fluidas e instáveis, não deveriam ser injustamente taxados de tóxicos. O critério de toxicidade parental não pode ser definido com base na ação dos pais de impor limites, cuidar, discordar ou quando os pais são vistos como obstáculo entre o filho e as experiências de satisfação e prazer.

Um ponto delicado é que alguns psicoterapeutas, ao ouvirem apenas a versão dos filhos, podem inadvertidamente reforçar essa narrativa unilateral, sem considerar o contexto familiar mais amplo. O processo terapêutico, no entanto, deve ajudar a diferenciar quando há realmente abuso ou negligência, e quando o que existe são apenas conflitos geracionais, divergências de valores ou frustrações naturais da vida. Quando o conceito de “pais tóxicos” é inflacionado e banalizado, surgem sérios problemas.

Em uma perspectiva terapêutica comprometida com a saúde das interações familiares, pais e filhos devem evitar a prática da culpabilização mútua — essa tendência neurótica de sempre buscar um culpado quando as coisas não saem como se deseja. Culpa só pode ser legitimamente atribuída a quem escolhe, de forma deliberada e sistemática, infringir dor e sofrimento ao outro. A prática da acusação tanto por parte dos filhos quanto por parte dos pais é infantil! Ela impede o consenso a possibilidade de entendimento.

A atitude mais madura e saudável na relação pais e filhos não é buscar culpados, mas aceitar que tanto pais quanto filhos são seres imperfeitos, que erram, se contradizem e tomam decisões equivocadas. A vida humana não se constrói sobre o ideal de perfeição, mas sobre a possibilidade de recomeçar, reparar e amadurecer a partir das falhas.

A intenção aqui não é a de inocentar pais nem condenar filhos, mas libertar ambos da prisão da culpa e da exigência de perfeição. Quando se acolhe a imperfeição como parte inevitável da condição humana, é possível transformar a dor em aprendizado e construir relações familiares menos idealizadas e mais saudáveis.

A pergunta essencial é: “Meus pais estão intencionalmente me ferindo, ou apenas cuidando de mim e estabelecendo limites para a minha própria segurança e para o meu desenvolvimento pessoal?” Essa distinção permite não apenas compreender melhor a história familiar, mas também cultivar relacionamentos mais tolerantes consigo mesmo e com os pais. Cuidado para não considerar tóxico o remédio ou o tratamento que tem a função de produzir e proteger a sua saúde.

Alexandre De Paula Amorim, antropólogo, teólogo e graduando em psicologia

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