Opinião | No transporte público a tecnologia substitui o cobrador, nada substitui o corredor

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Tudo é, em última instância, uma questão de quem paga a conta. E sempre alguém vai pagar. No caso do transporte público, o correto é pagar quem pega ônibus ou todo mundo que é beneficiado por ele (todos)?

Na atual formatação do transporte público, essa conta recai majoritariamente sobre quem utiliza o próprio sistema. Mesmo que, após a pandemia, essa lógica tenha sido parcialmente atenuada pela necessidade de os municípios subsidiarem parte da tarifa com recursos públicos, o peso principal do financiamento continua sendo suportado apenas por quem anda de ônibus.

Aguarda-se agora a consolidação de um marco legal que estabeleça diretrizes para uma rede integrada e acessível, definindo responsabilidades entre os entes federados, ampliando a segurança jurídica do setor e apontando novas bases de financiamento, garantindo aos usuários direitos como acessibilidade, informação e segurança.

Com essas novas diretrizes, caberá ao poder público assegurar eficiência, sustentabilidade e modelos tarifários, por meio da revisão dos modelos operacionais, da eliminação de ineficiências e da adoção de tecnologias capazes de reduzir custos sem comprometer a qualidade do serviço. Fica evidente que a estruturação do sistema precisará ocorrer a partir da eficiência; ignorar ou postergar o uso da tecnologia é fugir de uma realidade que já se impõe.

É igualmente evidente que todo custo possível de ser retirado da planilha operacional deve ser eliminado.

Se há meios tecnológicos ou mudanças operacionais capazes de promover essa redução, eles precisam ser adotados. Utilizar como argumento contrário a possível perda de empregos soa descolado da realidade, especialmente em uma cidade onde o desemprego gira em torno de menos de 3% da população.

Mais grave ainda é que esse custo acaba sendo financiado, em regra, por quem menos tem: o próprio trabalhador. No Brasil, onde a principal base de usuários do transporte público pertence às camadas de menor renda, cria-se a distorção de “pobre financiando pobre”.

Atualmente, cerca de 7% dos passageiros pagam a tarifa em dinheiro. Ainda assim, mantém-se um cobrador em cada ônibus exclusivamente para essa função, o que chega a representar até 17% do custo da tarifa. É um contrassenso. Motivos como segurança, controle operacional ou auxílio ao motorista podem até justificar alguma presença humana, mas a cobrança em dinheiro, isoladamente, já se tornou obsoleta no mundo todo há muito tempo. Essa função pode ser plenamente substituída por sistemas automatizados e por câmeras com inteligência artificial.

É provável que, em pouco tempo, essa discussão seja esquecida ou naturalizada. É difícil imaginar um futuro mais eficiente em que ainda sejamos obrigados a manter frentistas ou cobradores apenas para preservar modelos ultrapassados, aumentando custos quando a tecnologia já os substitui de forma consolidada.

O mesmo ocorre quando se questiona a adoção de caixas de autoatendimento em supermercados, apesar de serem uma realidade irreversível.

Por fim, mais do que essa discussão, qualquer debate sério sobre transporte público precisa enfrentar, de maneira objetiva e primordial, a questão dos corredores exclusivos de ônibus. Eles são determinantes para garantir velocidade, regularidade e confiabilidade ao sistema, reduzindo tempos de viagem, aumentando a produtividade da frota e tornando o transporte coletivo efetivamente competitivo em relação ao automóvel, aumentando a qualidade e a eficiência do sistema e trazendo mais usuários para o transporte público.

Corredores bem implantados transportam muito mais pessoas ocupando menos espaço viário, melhoram o cumprimento de horários, reduzem o consumo de combustível e diminuem os custos operacionais por passageiro. O corredor de ônibus é, na prática, o caminho mais curto entre os terminais.

Retirar ou fragilizar esses corredores em favor do veículo individual contraria frontalmente o marco legal da mobilidade urbana, aprofunda congestionamentos, eleva os custos do sistema e compromete a modicidade tarifária.

Quando eu atuava no controle de trânsito na Rua Itajaí, na saída da Ponte dos Arcos, logo após a implantação do corredor de ônibus no local, que à época implicou a retirada de vagas de estacionamento, e não de uma faixa destinada aos automóveis, como ainda hoje alguns motoristas alegam, em determinadas situações, diante das prerrogativas legais do agente de trânsito e visando à liberação mais rápida do fluxo, eu permitia momentaneamente a circulação de veículos pelo corredor.

No curto prazo, essa medida facilitava o controle do setor. Porém, ao se observar o cenário de forma mais ampla, surge a pergunta: a que preço? Criava-se a percepção de que qualquer condutor poderia transitar pelo corredor exclusivo, obrigando os ônibus a disputar espaço com os automóveis.

Como bem sintetizou Jaime Lerner: “Mesmo quem não anda de ônibus depende deles.”

Defender corredores de ônibus, portanto, não é uma escolha ideológica, mas uma decisão técnica, econômica, ambiental e social. É optar por um sistema que prioriza pessoas em vez de veículos, melhora a fluidez urbana, reduz emissões, amplia o acesso à cidade e contribui para uma mobilidade mais justa, eficiente e funcional.

Discutir transporte público exige enfrentar tudo o que temos no momento, sem medo, quem paga a conta e como os recursos são utilizados, reconhecendo que o modelo atual ainda penaliza majoritariamente o usuário do ônibus, apesar do reconhecimento legal do transporte coletivo como direito social e serviço público essencial.

A busca por mudança tarifária e redução de custos passa, necessariamente, pela eliminação de ineficiências, pela revisão de modelos operacionais e pela incorporação de tecnologias já consolidadas, sem que o medo de mudanças sirva como justificativa para manter custos que recaem sobre quem menos pode pagar.

Da mesma forma, a defesa de corredores exclusivos de ônibus não é ideológica, mas técnica: eles são fundamentais para garantir eficiência, previsibilidade, menor custo operacional e justiça social, pois priorizam pessoas em vez de veículos, reduzem congestionamentos, emissões e desigualdades urbanas, tornando o transporte coletivo competitivo, confiável e capaz de cumprir o papel que a legislação e a própria cidade dele exigem.

Com o trânsito não se brinca. 

Lucio R. Beckhauser, Agente de Trânsito, Especialista em Direito de Trânsito

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