Opinião | Cortesia e bom senso no trânsito não existem

Imagem gerada com IA

No trânsito, só existe uma possibilidade, seguir as regras. Não cabe ao indivíduo escolher, instantaneamente, como, quando ou quais regras deve seguir, isso já foi definido antecipadamente por meio de estudos técnicos, análises científicas e leis.

Pense em um cenário do dia a dia: uma via preferencial com o tráfego fluindo normalmente, até que um motorista resolve “ser gentil”, usar o bom senso, ser cortês e parar o veículo no meio da pista para permitir que outro, vindo da via não preferencial, atravesse. Parece uma boa ideia? Talvez seja gentil. Mas é perigoso.

Essa interrupção quebra o ritmo do trânsito, surpreende os veículos que vêm atrás, confunde pedestres e ignora toda a sinalização planejada por especialistas e engenheiros de tráfego.

O resultado é previsível: filas, buzinas, riscos, acidentes, sinistros, discussões, tudo em nome de uma gentileza que ignora o senso comum e, pior, a lei.

Normalmente, o chamado “bom senso” está ligado a situações intuitivas, nas quais se busca fazer o melhor instintivamente, sem uma análise mais profunda ou de longo prazo. Trata-se de um improviso momentâneo da ética, e embora isso possa ser aceito em várias situações da vida, no trânsito isso é um erro pois não há espaço para improvisos.

Por mais contraditório que pareça, um dos fatores que mais contribuem para congestionamentos e acidentes nos centros urbanos é essa “cortesia irresponsável”. Motoristas, muitas vezes bem-intencionados, ao desrespeitar ou alterar as normas do Código de Trânsito e regras previamente estudadas para “ajudar” outros condutores, acabam provocando atrasos, confusão e sinistros.

Em uma análise aritmética realizada no Centro de Controle Operacional (CCO) de Blumenau, em 2024, observou-se um padrão preocupante no trânsito de um trecho da Rua São Paulo com a Rua Timbó. A cada veículo que cedia passagem em uma via não preferencial, oito veículos da via preferencial deixavam de passar no cruzamento monitorado.

O Código de Trânsito Brasileiro (CTB) é claro no capítulo das regras e normas de circulação e conduta no trânsito. O artigo 29 define os critérios de preferência de passagem com base em parâmetros técnicos, como o fluxo de veículos e a hierarquia das vias. Veja:

Art. 29, inciso III, alínea “b”: “Quando veículos, transitando por fluxos que se cruzem, se aproximarem de local não sinalizado, terá preferência de passagem.”

Dentro das regras existem as preferências, e estas determinam quais veículos ou pessoas deverão ter prioridade no local. Essa definição é construída pela engenharia ou pela sinalização, da maneira mais segura e eficaz possível, não cabendo a decisão instantânea e pessoal do condutor ou do pedestre. Ao condutor cabe conhecer, identificar e aplicar corretamente a regra vigente no local.

Não cabem decisões individuais, mesmo que baseadas em boas intenções, em um ambiente pensado e construído para a coletividade.

A lógica do trânsito é fruto de estudos técnicos, análises de fluxo, volumes médios de tráfego e sinalização padronizada. Quando um motorista rompe com essa lógica a partir de seu julgamento pessoal, por mais bem-intencionado que seja, compromete uma engrenagem delicada e coloca todos em risco.

E olhe que essas intenções são tão pessoais que é perceptível como muitas vezes nascem de um foro interno e subjetivo, sem qualquer critério definido. Se a pessoa acorda bem, decide mudar as regras para, na opinião dela, “ajudar” os outros; mas, se acorda mal, já não acredita nessas boas intenções. Se não está com pressa, quer ajudar todo mundo; se está com pressa, esquece disso tudo e quer passar por cima, ficando irritada com quem, antes, achava estar usando o “bom senso”.

Até mesmo o tão exaltado “bom senso”, que muitos consideram essencial no dia a dia, no trânsito costuma ser apenas uma forma disfarçada de pedir algo em benefício próprio, quase sempre de maneira individualista e voltada para satisfazer uma vontade pessoal, às custas do outro.

Como fiscalizador de trânsito, é comum ouvir esse apelo justamente de quem acaba de cometer uma infração. Ou seja, a pessoa que não teve o bom senso de cumprir a lei pede ao agente que o tenha. Na prática, o infrator solicita uma vantagem imoral e ilegal logo após praticar uma ilegalidade, um comportamento culturalmente brasileiro, no mínimo, paradoxal.

Nos congestionamentos do dia a dia percebemos essas ações acontecendo e interferindo constantemente.

Quem nunca transitou por uma rua onde o trânsito está constantemente congestionado e ao chegar ao ponto do problema, percebe que a única situação que atrapalha tudo foi a turma do “deixa eu passar”. Gente que, só por hoje, decide que a via prioritária não precisa mais ser prioritária, que a placa de “parada obrigatória” está errada e que, a partir de agora, quem deve parar são os outros. São pequenas atitudes que, somadas, desorganizam o sistema e reconstroem o caos em nome da boa vontade.

No fim das contas, o trânsito não precisa de mais gentilezas improvisadas, precisa de respeito às regras.

Gentileza verdadeira é prever o risco, obedecer a sinalização e confiar no que foi planejado coletivamente. É compreender que, em um espaço compartilhado, a obediência às normas é o maior ato de empatia.

Com o trânsito não se brinca. 

Lucio R. Beckhauser, Agente de Trânsito, Especialista em Direito de Trânsito

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