A aprovação do texto do Projeto de Lei – PL 1087/2025 pelo Congresso Nacional no início de outubro promoveu movimentações em torno do debate sobre a matriz tributária brasileira em face da desigualdade de renda registrada entre os diferentes extratos sociais derivados das disparidades econômicas que conformam a dinâmica da população brasileira. O projeto de lei, que visa zerar a alíquota do imposto de renda para quem recebe até R$ 5 mil reais por mês, também prevê o aumento da alíquota para altas rendas e institui a tributação, em alguns casos, de lucros e dividendos.
Salvaguardadas as especificidades do projeto no que concerne à aprovação pelo Poder Legislativo, é possível afirmar desde já que a proposta de diminuição (ou anulação) do imposto de renda de parte da população associada ao aumento da tributação de grandes rendas se apresenta como uma proposta comprometida com o que é possível designar como “justiça social”. Esse princípio permite conceber as relações sociais, políticas e econômicas a partir dos critérios de igualdade (política e econômica) e valorização de propostas de desenvolvimento social, político e econômico articuladas em torno do benefício da coletividade em detrimento da perpetuação de privilégios historicamente constituídos e concentrados por segmentos sociais específicos. As propostas que se constituem a partir de critérios de justiça social se comprometem com uma espécie de revisão do passado e do presente, no que este pode conservar ou acentuar aspectos problemáticos daquele e que, por sua vez, impedem a realização da igualdade política e econômica em arranjos institucionais marcados por intensas disputas sobre a riqueza socialmente produzida, mas não apenas sobre ela. Trata-se de considerar as disputas sobre a distribuição dessa riqueza de forma razoavelmente equitativa em face da sua concentração nas mãos de segmentos privilegiados e minoritários em número de indivíduos, em relação a um projeto de sociedade cidadão e mesmo de um Estado soberano.
No caso do Brasil, o panorama histórico perpassado pela escravização de povos indígenas e negros é complementado pelo autoritarismo de elites locais representadas estadual e nacionalmente em seus interesses (manifestado nas práticas do coronelismo) e o aspecto predatório do capital estrangeiro compartilhado com elites brasileiras em suas diversas instâncias sobre as potencialidades e riquezas nacionais. Essas relações de dominação se consolidam em diversos planos, favorecendo ou prejudicando diferentes grupos sociais. Se no caso da tentativa de influência na política interna por parte dos interesses estrangeiros são comprometidos os interesses nacionais e limitada a expansão econômica do país, no caso da dominação exercida internamente entre grupos nacionais permite-se a criação e perpetuação de desigualdades não apenas econômicas, mas também de acesso a direitos, à autonomia e às condições básicas de ascensão social prometidas no interior de um sistema marcado pelo discurso meritocrático.
Significa dizer que, historicamente, o modo de produção de riqueza exercido no Brasil (e em parte do mundo) contribui para a concentração de renda, por um lado e, por outro, consolida um modo de vida pautado na sobrevivência cotidiana, em que os horizontes de planejamento são limitados pelas necessidades pontuais vinculadas à manutenção da vida. A impossibilidade de acesso a condições de ascensão social vinculadas ao mundo do trabalho figura, nesse sentido, como uma das principais limitações às classes que historicamente participam da produção de riqueza por meio do trabalho, ao mesmo tempo em que não recebem o retorno suficiente pelo trabalho empreendido e ainda devem contribuir aos cofres públicos em proporções maiores do que aquelas praticadas por grupos sociais e econômicos restritos que compõem as elites nacionais.
A redução e isenção do imposto de renda para as parcelas mais pobres da classe trabalhadora brasileira se apresenta, assim, como uma proposta de justiça social. Não porque insere imediatamente tais grupos em esferas ampliadas de consumo, mas sobretudo porque manifesta um compromisso com a diminuição dos efeitos geradores de desigualdades de um modo de produção de riqueza e concentração de renda em si problemático. Por isso, se o PL 1087 se apresenta como proposta necessária do ponto de vista da justiça social, não é, ao mesmo tempo, suficiente para restituir as camadas historicamente prejudicadas pelo modo de produção empreendido no Brasil, algo que deve ser comentado adiante.
A consciência deste tipo de relação entre um modo de produção e de distribuição da riqueza e as dificuldades enfrentadas cotidianamente pela população na manutenção da vida parece estar também no centro das mobilizações políticas populares reivindicantes do aumento da alíquota de imposto para as classes ricas e tributação de lucros e dividendos para determinadas atividades econômicas como as casas de apostas e jogos de azar. Se o apelo popular do PL 1087/2025 se apresenta como um dos principais movimentos da população em torno do delineamento de políticas, é porque a realidade vivida e percebida incita a mobilização. Os dados divulgados recentemente pelo IBGE parecem confirmar esta dimensão: atualmente, no Brasil, cerca de 35% dos trabalhadores recebem até um salário mínimo; cerca de 32% dos trabalhadores recebem de um a dois salários mínimos, o que significa que mais de 60% dos trabalhadores no Brasil recebem até dois salários mínimos.
Ao mesmo tempo, do ponto de vista da renda, o estudo “Progressividade Tributária e Desigualdade no Brasil: Evidências a partir de Dados Administrativos Integrados” publicado em agosto de 2025, aponta para uma elevada concentração de renda associada à diminuta carga tributária sobre as parcelas mais ricas da população. Segundo o estudo, enquanto o 1% mais rico da população brasileira concentra cerca de 27% da renda nacional antes de impostos, a carga tributária que incide sobre essa classe (consideradas renda e consumo) é de 26,2%. Os tributos sobre as demais classes (sobretudo em relação à renda e consumo), por sua vez, gira em torno de 45% a 50%.
Tais dados apontam não apenas para elevados níveis de concentração de renda, mas também para cargas tributárias desiguais em relação a classes ricas, médias e pobres, revelando disparidades sociais de acesso a serviços públicos, de acesso a melhores empregos, de oportunidades e de efetiva participação cidadã. Nesta perspectiva é preciso considerar que sob tais condições de profundas desigualdades sociais se torna extremamente difícil ao Estado brasileiro, à sociedade brasileira, alcançar desenvolvimento humano e social consistente. Portanto, quando se afirma a condição irrenunciável de se estabelecer justiça social se está apontando para o fato inconteste de que em sociedades marcadas pela desigualdade social, de acesso à renda, de acesso a serviços públicos qualitativos, de garantias materiais para o exercício da cidadania, a lógica operante é a manutenção de sua condição periférica, empobrecida e precarizada no contexto nacional e internacional.
No âmbito das demandas políticas que emergem de debates e mobilizações coletivas, as desigualdades de renda e tributação são, por vezes, trazidas à tona por meio de ações governamentais. Lembre-se, nesse sentido, da decisão do governo federal de zerar as alíquotas de impostos sobre a importação de jet-skis em 2022. Tal medida, baldia em relação às necessidades de parte das classes trabalhadoras ocupadas com o consumo de bens vinculados à sobrevivência cotidiana, mostrava-se concernida, à época, com a promoção de bens de consumo às classes médias-altas e ricas.
É nessa direção que se deve retomar o debate sobre o caráter de necessidade da diminuição da alíquota do imposto de renda sobre parte da população brasileira em face das desigualdades historicamente conformadas no tecido social. Isso porque compreende-se que o caráter de necessidade de tal medida não retira a urgência de pautas como a ampliação e melhoramento de sistemas de serviços públicos vinculados à saúde, educação, moradia e assistência. Tal urgência não se traduz apenas como um meio de lidar com problemas sociais, satisfazer necessidades pontuais ou aliviar sofrimentos decorrentes da falta de renda. Elas constituem, integradas, um potencial projeto de nação vinculado às exigências da justiça social. Nesse sentido, também participam de um horizonte que visa restituir os historicamente violentados pela dinâmica escravocrata e coronelista brasileira: não por meio da garantia deste ou daquele direito, mas pela promoção de um modo de vida e de produção da riqueza comprometidos com a equidade nos processos sociais, políticos e econômicos. Esta demanda se apresenta não apenas diante da necessidade de remunerar adequadamente o trabalho produtor de riqueza, mas sobretudo a partir da necessidade de valorizar a vida humana enquanto atribuída de valor intrínseco.
Sandra Eloisa Pisa Bazzanella, Estudante e pesquisadora de Filosofia, e Sandro Luiz Bazzanella, Professor de Filosofia






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