Opinião | A era da espuma: um manual de sobrevivência para a embriaguez da comunicação pública e política

Imagem gerada com IA

“Dindo, você sabia que essas bolhinhas apostam corridinha na estrada da água? Olha ali, começam lá embaixo e vrumm! Sobem bem rápido. Eu gosto muito dessa água de bolhinhas”.
Foi em uma tarde de domingo que um dos meus afilhados, olhos arregalados, encantado com o espetáculo microscópico de um copo aparentemente banal, chamou minha atenção para a tal corrida que eu nunca tinha deixado o corpo observar. Crianças têm esse dom raro de enxergar vida onde os adultos veem rotina, inutilidade. Elas são capazes de encontrar histórias até no que é incolor, inodoro e insípido — a própria água.

Como escrevi na semana passada, o H₂O é o líquido da vida. A ausência ou o excesso da água molda não só a paisagem, mas também o desenho simbólico de tudo o que nos cerca. Blumenau entende disso como nenhuma outra cidade. Aqui, as águas sempre tiveram um papel de protagonista, sejam as que sobem dos rios ou as que fervilham nos copos.

Meu afilhado ainda vai demorar a entender o que os adultos chamam de perlage. Essa palavra rebuscada de origem francesa e é uma dessas que parecem delicadas demais para o xucro português barulhento e direto que praticamos no Brasil. Mas, ela possui uma importância enorme para cultura de espumantes. Significa “colar de pérolas” e descreve as bolhas de gás carbônico que sobem na taça. Para os especialistas, o perlage é um selo de qualidade. A forma, o ritmo, o tamanho e a persistência das bolhas revelam o cuidado de quem produziu a bebida. Mas, que fique claro:  o chope não possui perlage, e sim um colarinho de respeito.

Olhando assim, comparativamente, a comunicação pública e política deste nosso tempo não parece se assemelhar a um copo efervescente? Se a água move a vida, a espuma é o que distrai o olhar. Enquanto as bolhas do chope fazem sua dança, o barulho das bandas já se mistura ao do poder público e aos políticos que preparam os seus próprios desfiles: de postagens nas redes sociais. Bem menos poéticas e ingênuas, sobem mensagens como luminosos nas telas dos celulares.

Talvez o problema da comunicação pública moderna seja justamente esse: confundirmos transparência, prestação de serviço, acesso amplo da população com efervescência, desvios de finalidade e autopromoção. A espuma, linda para um clique fotográfico, bonita para celebrar uma conquista, virou sinônimo de presença digital. O conteúdo, que é de fato o que importa, aquele líquido vital da política e do jornalismo, parece ter evaporado no brinde das postagens.

Vamos ao exemplo da Oktoberfest? As autoridades desfilam com canecos nas mãos e celulares no alto, como se o ato de registrar fosse mais importante que o de governar. E, claro, entre uma selfie e outra, lá está o videomaker da prefeitura, câmera na mão, transformando o gestor em protagonista da própria peça. O cidadão, que deveria ser o público-alvo da comunicação estatal, vira figurante e ainda paga a conta.

Há quem chame isso de “nova linguagem de governo”. Mas, convenhamos, o que há de novo em usar dinheiro público para construir narrativa pessoal e vender a própria imagem? Só mudou o cenário: antes, a propaganda era feita em placas, outdoors, impressos, rádios e TV’s e, hoje, se disfarça em stories, reels e legendas com emojis. A tecnologia mudou, o vício – ou a prática – não.

Vivemos em um momento da comunicação pública em que parece que caminhamos bêbados, descolados da realidade. Falta uma dose de responsabilidade para profissionais, gestores, políticos, órgãos de fiscalização e juízes. A comunicação pública não pertence nem ao governo, nem à imprensa, nem ao cidadão isoladamente, mas a todos os agentes. É, digamos, um território compartilhado que exige ética, clareza e, sobretudo, limites. E este limite é justamente o que está faltando para separar a promoção pessoal do atendimento da população.

A metáfora da espuma serve bem a esse tempo. Porque espuma engana: cobre o copo, preenche o espaço, mas logo se desfaz, revelando o quanto havia de vazio. O mesmo vale para o conteúdo produzido nas redes de prefeitos, secretários e governadores que confundem comunicação institucional com performance pessoal. São as “espumas do poder”, diria Jürgen Habermas, se tropicalizássemos as ideias do filósofo alemão que dedicou a vida a estudar a democracia permeada pela comunicação e pelas ações públicas.

Divagando aqui, com um delicioso puro malte ao alcance da mão, penso como é curioso que a lógica da embriaguez se repete. Acompanhe comigo: primeiro vem a euforia da viralização, todas aquelas curtidas, corações, aplausos. Em seguida, o enjoo ético, o cansaço de quem está bombardeado por um excesso de mensagens dignas de manual de vendedor de curso na internet. Passada a festa, sobra a ressaca de perceber que o servidor público, em vez de garantir o direito à informação, virou um editor de marketing de luxo do chefe.

Viajando em pensamento para uma cidade fictícia, digamos de Santa Terrinha, com seus duzentos e poucos mil habitantes, poderíamos encontrar o exemplo ideal. Sua secretaria de comunicação possui uma equipe inteira dedicada à imagem do prefeito: roteiristas, editores, designers, social media e até um operador de drone. O problema? Nenhum deles produz conteúdo para o site oficial, o portal da transparência ou as campanhas educativas. Ou até produz, para cumprir o básico. Tudo de relevante e de esforço criativo, porém, vai para o perfil pessoal do gestor. O cidadão que busca informação institucional precisa fazer uma jornada e garimpar entre vídeos de “rotina do prefeito”, cafés comunitários e inaugurações que mais parecem comerciais de margarina.

A comunicação pública, que deveria ser ponte, vira espelho. Prefeitos, governadores e secretários deixam de se preocupar com a clareza da mensagem e passam a medir o sucesso pela métrica da vaidade. É o fenômeno do “gestor-influencer”, figura que acredita que o serviço só existe quando é filmado.

No final do expediente, o servidor aperta “publicar” e suspira. Cumpriu a sua meta do dia. Mas, no fundo, sabe que serviu mais ao algoritmo do que à população. Muitas vezes a escolha nem carrega maldade ou intenção de ludibriar o cidadão. Acontece que faltam regras e disciplina para o exercício da comunicação pública e política sem misturar tudo em um único pote de pó mágico. Afinal, onde termina o dever institucional de informar e começa o impulso de fazer o perfil pessoal do político aparecer?

O resultado é um tipo novo de populismo midiático: o da visibilidade digital. A cada curtida, um voto potencial, a cada story, um pedaço da impessoalidade republicana se dissolve. E, como na espuma do chope, quanto mais se mexe, mais ela cresce… até transbordar. Quando o gestor usa a estrutura institucional para nutrir sua própria imagem, cria-se um campo de disputa desigual, como um acúmulo ilegítimo de capital simbólico. Em bom português: o sujeito usa o holofote público para iluminar o próprio rosto. Além disso, as ferramentas digitais de comunicação permitem que a visualização do conteúdo produzido seja convertida em receita financeira. Ou seja, a boa qualidade de um servidor pode alimentar a conta bancária de um político-influencer.

Alterar este estado de coisas é uma tarefa difícil. A resistência é feroz. Políticos preferem o sistema atual, onde podem usar dinheiro público sem dar satisfação e ainda se vitimizar quando questionados. Mas, o Brasil precisa escolher: ou vira uma república de influencers financiados pelo contribuinte, ou organiza um sistema em que política e gestão pública convivem sem se confundir. A terceira opção, de continuar fingindo que não há problema, já provou ser insustentável.

Parece que ainda não entendemos que comunicar é mais do que postar nas redes. A comunicação pública moderna deveria ter transparência de autoria e financiamento. Ou seja, o cidadão tem direito de saber quem gravou, quem editou, quem pagou. Em um mundo ideal, cada postagem de um órgão público viria acompanhada de um pequeno selo, como aqueles rótulos de pureza da cerveja alemã: “conteúdo produzido com recursos públicos, finalidade institucional.” Já para as redes dos políticos em exercício de cargo no executivo, este reclame alertaria para o conteúdo pessoal, partidário ou eleitoral e indicaria quem pagou e quais são os profissionais envolvidos.

Porque, convenhamos, o bar da democracia precisa de bons garçons, mas é o cidadão quem deve escolher a bebida. Afinal, é quem paga a conta, não é mesmo? Como financiar estruturas de comunicação pública e política sem transformar o servidor público em assessor de campanha? Bom, esse é um assunto para um outro papo. Quem sabe, da próxima vez, sem bebidas com bolhinhas?

Tarciso Souza, jornalista e empresário

Seja o primeiro a comentar

Faça um comentário

Seu e-mail não será divulgado.


*