Opinião | O Estatuto Democrático diante da cultura política brasileira

Foto: Fabio Rodrigues-Pozzebom/Agência Brasil

O julgamento em curso da intentada golpista planejada por um ex-presidente no exercício da função, por militares e ministros de Estado entre 2021 e 2023 possui um aspecto pedagógico. Ele faz afirmar-se em território nacional (e aos olhos da comunidade internacional) a garantia do Estado Democrático de Direito instituído via intensas mobilizações políticas e sociais durante e após a ditadura cívico-militar entre os anos 1960 e 1980. Entretanto, cabe perguntar pelo estatuto de tal movimento jurídico diante da mobilização pública (ou falta dela) enquanto sinônimo da condenação coletiva à tentativa de suspensão da democracia. Trata-se de perguntar: é possível medir a qualidade de uma democracia pelo (necessário) julgamento em âmbito jurídico daqueles que visam destituí-la?

A tentativa de golpe de Estado e abolição do Estado Democrático de Direito ora em julgamento conta com episódios que datam de 2021 a 2023. Em 2021 as manifestações identificadas no voto de Alexandre de Moraes foram expressadas pelo ex-presidente Bolsonaro em âmbito discursivo em live e na própria cerimônia oficial de 07 de setembro. O teor das afirmações não apenas colocava em dúvida o sistema de urnas eletrônicas, como indicava potenciais negações dos futuros resultados das eleições de 2022 caso não indicassem a vitória de Bolsonaro. Já em 2023, a principal expressão da articulada tentativa de golpe orquestrada pelo alto escalão do governo então derrotado nas urnas foi manifestada nos atos de 08 de janeiro. Para além da depredação do patrimônio público e da violência contra os prédios dos três poderes, o episódio deve ser lembrado também pela ingerência de parte do setor de inteligência e segurança responsável pela transição, teoricamente, democrática entre governos. Ao longo de 2024 e 2025, entretanto, minutas e documentos que oficializavam um plano de golpe de Estado e até de assassinato (!) de Lula, Alckmin e Alexandre de Moraes, vieram à público, revelando que a tentativa de supressão do governo então eleito compunha, efetivamente, um plano de supressão da própria democracia brasileira.

Todos esses episódios são reunidos hoje como componentes de um planejamento de tomada do poder e suspensão do regime democrático no Brasil, e seu julgamento se dá no âmbito do mesmo Estado de Direito que visava suspender. O poder judiciário, como poder não eleito, mas instituído via processos de admissão e, no caso do STF, indicação, deve ser lembrado como um poder legal, porém não necessariamente conformado a partir da demanda social. Isto é, se as leis emergem também elas de contextos sociais que demandam regulação, nem por isso as decisões jurídicas publicadas Brasil afora todos os dias seguem demandas populares.

No caso da tentativa golpista, as decisões jurídicas da primeira turma do STF se manifestam na direção de defender o Estado Democrático de Direito ameaçado por Bolsonaro e seus aliados. Nesse sentido, a defesa que o STF faz da democracia brasileira apresenta um aspecto de civismo relevante não apenas em âmbito interno, mas também aos olhos da comunidade internacional. Ao cumprir o devido processo penal em relação aos procedimentos de reclusão de Bolsonaro e ao garantir a ampla defesa aos réus, sem conluios entre juízes e promotores (como ocorrido na história recente, nos idos de 2015 a 2020), o julgamento da tentativa de golpe é um demonstrativo do poder decisório e regulatório das instituições jurídicas.

Por outro lado, se as decisões jurídicas não partem necessariamente da demanda popular, mas do cumprimento de procedimentos legais, é necessário questionar o estatuto do julgamento popular a que Bolsonaro e os companheiros de golpe são submetidos no âmbito da opinião social. Isto é: será o caso que o julgamento em âmbito legal significa que a sociedade brasileira está disposta a debater o estatuto da democracia, defender essa forma de governo e se comprometer ao exercício democrático do debate público?

Como permitem apontar os movimentos pró e contra a anistia aos presos de 08 de janeiro e aos organizadores do golpe, essa não é uma pergunta facilmente respondida. As manifestações que se espraiam no sentido de reivindicar o perdão legal e político aos que atacaram o estatuto democrático brasileiro são sintomáticas de dúbias valorações da democracia enquanto forma de governo vigente no país, indicando que ela pode, nalguns contextos, ser trocada por projetos de poder autoritários com lastro na opinião pública.

No caso brasileiro esse movimento parece estar atrelado a dificuldades inerentes a um país de dimensões continentais cuja dinâmica política é marcada, ainda hoje, pelo aspecto coronelista das elites nacionais e de sua gratuita subserviência à dinâmica do capital internacional. O Estado brasileiro, na figura dos governos executivo e legislativo, permanece, assim, não apenas vinculado a grupos de interesse nacionais, mas, como demonstra o caso do tarifaço, à pressão internacional. Exemplo dessa dinâmica é a existência de um congresso nacional dividido entre bancadas que representam os interesses da indústria armamentista, do agronegócio e das igrejas neopentecostais, como é a chamada bancada BBB (boi, bala, bíblia).

A dificuldade do reconhecimento da representatividade expressa nos cargos legislativos e executivos tem sido ampliada também ao longo dos anos recentes na medida em que a dinâmica de redes conta com o impulsionamento de fake news. A criação de mentiras contribui não apenas para o desmantelamento de projetos políticos e enfraquecimento de candidatos e partidos, mas permite, sobretudo, um poderoso direcionamento da opinião pública, convergida em candidatos dispostos a “salvar” a política nacional. Aqui tudo ocorre no âmbito do discurso, do convencimento, daí porque a noção de “narrativa” tem substituído tão eficazmente a noção de “debate público”. Se, no exercício democrático por excelência (o exercício do diálogo e do debate coletivo), está em jogo a deliberação sobre os fins de uma sociedade, os bens que considera valiosos e as decisões que está disposta (ou não) a tomar com vistas a esses fins, no âmbito das narrativas não há espaço para o debate, para o aprimoramento ou para a dinâmica dialógica da construção de sentido coletiva. Há convencimento, adesão, defesa discursiva.

Significa que, em relação à representatividade, não se pode esperar muita coisa. O estatuto de uma democracia depende do fato de seus cidadãos compreenderem-se enquanto representados por ela, enquanto participantes dos processos decisórios e membros de uma coletividade. Se a etimologia do termo deve ser levada a sério, do grego demos = governo e kratos = povo, então o exercício democrático exige qualificada participação coletiva; exige que os indivíduos se vejam representados e membros das instâncias deliberativas. No contexto brasileiro, tomado pelo autoritarismo de grupos de interesse, desde as esferas municipais às federais, a capacidade representativa de um sistema que se entende como democrático passa ao largo das demandas sociais de representatividade no âmbito político.

Daí porque o poder judiciário, cujo papel é salvaguardar a constituição nacional, passa a ser incluído na disputa política. Por um lado, considera-se que o aspecto político permeia as decisões em âmbito jurídico (os tomadores de decisões possuem, também eles, crenças e visões de mundo que nem sempre são excluídas de suas decisões “técnicas”) e que na história recente do Brasil foram expressos, por exemplo, nos escândalos envolvendo alguns dos membros da Lava-Jato. Por outro lado, o aspecto constitutivo do poder judiciário é que não esteja submetido à opinião pública e possa, por isso, efetivar as decisões legais de acordo com a magna carta de cada território. É por isso que a tentativa de intimidação do poder judiciário se apresenta também enquanto anti-democrática: ela desconsidera o papel que este poder deveria cumprir no sentido de salvaguardar as condições de exercício da disputa democrática em âmbito político.

Para além desses aspectos, é necessário chamar atenção para a construção coletiva de um significado em torno do processo democrático e do valor da democracia. No caso brasileiro, há apenas algumas décadas o Estado democrático foi suspenso, direitos políticos foram cassados ao longo da ditadura cívico-militar que perseguiu, torturou e matou oponentes políticos. A dificuldade de a sociedade brasileira acertar as contas com esse passado recente e violento teve uma de suas principais expressões no próprio voto proferido por Jair Bolsonaro, quando do impeachment da ex-presidenta Dilma. O então deputado invocou a memória de Brilhante Ustra, torturador de Dilma e de tantos outros perseguidos políticos. O crescente apelo popular a Bolsonaro nos anos subsequentes já devia ser um indicativo de que neste país é possível prestar homenagens a ditadores, é possível ser saudosista de um tempo que matou brasileiros, é possível redesenhar a história nacional, marcada por um ethos escravocrata, coronelista e autoritário, para que vista trajes de uma grande epopeia rumo ao triunfo do bem contra o mal.

Por isso, apesar de necessário, o julgamento da trama golpista no STF é apenas uma parte do processo que deve ser empreendido em solo nacional a fim de salvaguardar o estatuto democrático brasileiro. O compromisso social com a democracia não pode ser medido simplesmente na capacidade de julgamento do poder judiciário. Ele exige uma significação pública e coletiva do que é a democracia; exige que o Estado democrático que se afirma seja efetivado na capacidade de participação popular nos processos decisórios; exige que a democracia que se formaliza em território nacional não esteja submetida à dinâmica de narrativas, úteis à eleição de representantes-engodos. O compromisso democrático, nesse sentido, é diário e coletivo, passa pelo fortalecimento social, da sociedade civil organizada, pela oferta de educação de qualidade e pela garantia de condições básicas à participação popular nos processos deliberativos. A qualidade de uma democracia, nesse caso, não será medida na sua capacidade de julgar detratores em âmbito jurídico, mas na existência, em âmbito político, de um senso democrático que sequer permite intentadas golpistas.

Sandra Eloisa Pisa Bazzanella, Estudante e pesquisadora de Filosofia e Sandro Luiz Bazzanella, Professor de Filosofia

2 Comentário

  1. Golpe é o que está em andamento há alguns anos nas decisões ditatoriais do STF, querendo a todo custo eliminar a direita do Brasil, com as perseguições a Daniel Silveira, Sérgio Moro, Alan dos Santos, e agora Bolsonaro e outros! Porém, existem ignorantes que aplaudem as decisões.
    Agora, pergunta a Alexandre Gonçalves e outros do IB: quando haverá espaço neste jornal para colunistas e/ou jornalistas de direita? Claramente só vemos o lado da esquerda atuando aqui, numa agência de imprensa que se diz imparcial.

  2. Julgamento com decisão pronta , igual as provas que Moraes mostrou e que sequer constavam dos autos .
    Qualquer advogado de inicio de carreira contestaria estas provas que não constam dos autos , mas tem gente que é cega por questão de militância .
    Um ministro que fabrica provas , que se diz alvo, jamais poderia ser relator ou participar do tribunal .Mas aqui é Brasil , a balança da justiça atualmente só pesa para um lado .

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