Opinião | Autoridade, Autoritarismo e o Papel das Tradições nas Relações Contemporâneas

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O recente episódio em que o humorista conhecido como Carioca impediu seu filho de ler certos livros escolares por considerá-los “doutrinadores” reacendeu um debate fundamental: quem detém autoridade na educação? O caso revelou uma tensão contemporânea importante — a crescente dificuldade de distinguir autoridade legítima de autoritarismo. A reação pública, em grande parte contrária à atitude do pai, expôs um desconforto social diante da intervenção parental, mesmo quando exercida com responsabilidade. Paradoxalmente, naturaliza-se a influência da cultura midiática e a autoridade do Estado sobre os conteúdos escolares, ao mesmo tempo em que se questiona a mediação dos pais — justamente aqueles que, segundo a cientista política Hannah Arendt, têm o dever de introduzir a criança no mundo, atuando como mediadores entre o passado e o futuro.

Essa crise da autoridade parental está ligada à rejeição contemporânea das estruturas assimétricas, tidas como opressoras. No entanto, nem toda assimetria é violência: há formas legítimas de autoridade que se fundamentam no cuidado, na experiência e na responsabilidade. Sem essas figuras orientadoras, as crianças ficam expostas a um vazio simbólico, facilmente ocupado por influências desestruturantes ou até coercitivas. A autoridade, nesse sentido, não se impõe pela força, mas se reconhece pelo exemplo, pela responsabilidade e pelo compromisso com o bem-estar do outro.

A dificuldade em diferenciar autoridade de autoritarismo reflete uma espécie de disfunção social que afeta a educação, a família e até os contextos terapêuticos. Em uma recente escuta clínica, ouvi o relato de uma terapeuta sobre uma família imersa em um emaranhado emocional causado pela figura controladora do pai e ex-marido. Segundo ela, esse homem exercia um domínio moral e financeiro sobre a ex-esposa e as filhas, combinando humilhação com dependência econômica. A mãe, emocionalmente fragilizada, era protegida pelas próprias filhas, o que invertia os papéis parentais. Curiosamente, ao sugerir que a mãe retomasse sua “autoridade materna”, a terapeuta expressou visível desconforto com o termo — colocando-o entre aspas, como se fosse um conceito problemático em si. Esse detalhe revela o quanto a palavra “autoridade” tem se tornado quase impronunciável em alguns círculos, mesmo quando associada à restauração de vínculos e responsabilidades.

É fundamental, portanto, distinguir entre autoridade legítima e autoritarismo. Este último representa uma degeneração da autoridade: caracteriza-se pela imposição unilateral, pela supressão do diálogo e pelo uso da coerção como método. Enquanto a autoridade orienta, o autoritarismo domina. E, ao fazê-lo, mina a legitimidade do próprio poder, afastando-o de sua função originária: garantir a convivência respeitosa e a integridade das relações humanas.

Da mesma forma que confundimos autoridade com opressão, também há uma tendência a identificar tradição com patriarcalismo, machismo ou conservadorismo cego. No entanto, tradição não é sinônimo de imobilismo. Ela representa um conjunto de referências simbólicas — valores, práticas, narrativas — que permitem a continuidade entre as gerações. Longe de ser uma simples repetição do passado, a tradição envolve reinterpretação constante, pois nenhuma sociedade sobrevive sem adaptar os legados recebidos. O problema é que, em nome da velocidade, da autonomia e do prazer imediato, as sociedades modernas tendem a desqualificar as tradições como obstáculos à liberdade, quando na verdade elas oferecem os alicerces para relações mais estáveis, cuidadosas e éticas.

Inclusive no campo acadêmico, muitos pensadores influenciados por perspectivas chamadas “progressistas” desconsideram o papel civilizatório das tradições. Ignoram que, sem um mínimo de herança simbólica, a convivência social se fragiliza, e os indivíduos ficam reféns de discursos momentâneos, modismos ou estruturas de poder despersonalizadas.

É nesse ponto que se torna urgente a reabilitação simbólica e prática da autoridade legítima — aquela que não se impõe, mas se reconhece; que não sufoca, mas protege; que não é fruto do medo, mas do respeito. Essa autoridade pode, sim, se expressar em relações assimétricas, desde que sejam consensuais e orientadas para o bem comum — como entre pais e filhos, professores e alunos, líderes espirituais e fiéis, ou entre governantes e cidadãos. O critério ético para essa assimetria está no respeito à dignidade, à liberdade e à integridade de cada pessoa.

Como alertava o sociólogo polonês Zygmunt Bauman, vivemos em uma modernidade líquida, onde tudo é instável, transitório e volátil — inclusive os vínculos humanos. Nessa fluidez, é compreensível que se desconfie da autoridade. Mas ao rejeitar mediações estruturantes e dissolver os referenciais herdados, expomos as novas gerações à desorientação, à ansiedade e à falta de sentido.

Por isso, é preciso coragem e honestidade intelectual para rever os preconceitos contra a autoridade legítima e contra as tradições que sustentam a coesão social. Reabilitar a autoridade não significa retroceder a modelos opressores, mas construir novas formas de relação baseadas em responsabilidade, escuta e orientação.

A reconstrução de vínculos familiares e sociais exige que resgatemos o valor de figuras orientadoras — pais, professores, mentores — que ofereçam segurança simbólica e limites justos. Autoridade, nesse contexto, não é dominação arbitrária, mas presença protetora, promotora de desenvolvimento e mediação de conflitos. Reabilitá-la é garantir que as novas gerações não sejam entregues ao abandono em nome de uma liberdade mal compreendida, mas sejam preparadas para exercê-la com maturidade, enraizadas em valores que atravessam o tempo.

Alexandre De Paula Amorim, antropólogo, teólogo e graduando em psicologia

2 Comentário

  1. Excelente análise. Os filhos precisam de bons exemplos e direcionamento. A sociedade atual está permitindo que as crianças cresçam sem direção, o que leva a frustrações e falta de sentido a própria vida.

  2. As escolas cívico militares são o caminho para o resgate destes bons exemplos de respeito, civilidade, respeito às regras e os bons e velhos valores familiares. A sociedade retrocedeu para poder avançar e isto é visto nos acontecimentos que culminaram nos absurdos cometidos atualmente em todas as esferas da sociedade política, familiar, religiosa, empresarial, cultural, pública, privada, etc. Não evoluímos socialmente apenas vimos movimentos com objetivo de destruir o já construído, uma atitude não racional mas estúpida. Agora temos que retroceder para quem sabe em algumas décadas futuras avançarmos em uma evolução madura e responsável.

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